Ele pede para ser chamado de Jorge, recusa carros de luxo e tenta viver como um homem comum. O que você tem a aprender com ele
Primeiro de cinco filhos, Francisco foi criado com austeridade. O pai, imigrante italiano, era contador, exigente com escola e trabalho. A mãe, também italiana, cultivava o espírito de colaboração entre os irmãos. Incentivava a apreciação de música e literatura. “Ouvíamos com minha mãe, nos sábados às 2 da tarde, as óperas da Rádio del Estado. Estar com minha mãe e meus três irmãos mais velhos desfrutando a arte era uma beleza”, disse. O pequeno Jorge passava muito tempo na casa da avó, de quem assimilou a religiosidade e o dialeto da região do Piemonte, na Itália. Pouco antes de ser eleito papa, deu uma entrevista, e nela afirmou que essa avó, Rosa Maria Vasallo, era a pessoa que mais influenciara sua vida. Quando ele contou a ela que iria para o seminário, a avó respondeu: “Vá, mas se não for feliz saiba que a porta aqui está aberta”. Hoje em dia, quando o convívio familiar reduz a poucas e atribuladas horas, e as crianças muitas vezes mal conhecem seus avós, talvez faça sentido lembrar que o papa descobriu sua vocação e construiu sua personalidade à sombra de uma família ampla e presente, embora pobre. Assim que se instalou em Roma como papa, o ex-cardeal Bergoglio disparou uma série de telefonemas para Buenos Aires. Falou com o jornaleiro, o dentista e os funcionários da igreja. Quando gaguejavam sem saber como tratá-lo, respondia: “Me chame de Jorge, como sempre”. Fez o mesmo na Cúria Romana. Em vez de Sua Santidade, pediu para ser tratado como bispo de Roma. Isso poderia ser apenas questão de palavras. Não é. O papa Francisco parece ser mesmo um homem simples, que faz questão de evitar que as posições cada vez mais importantes que assumiu mexessem com seus hábitos e com sua cabeça. Isso criou uma enorme simpatia e boa vontade em torno dele. As pessoas admiram com razão gente importante que não se dá ares de grandeza e se relaciona normalmente com os demais. Isso, isoladamente, não explica a carreira bem sucedida de Bergoglio ou seu sucesso como papa, mas certamente é parte importante da explicação. Semanas atrás, durante uma missa na Praça de São Pedro, Francisco fez um comentário surpreendente: “Todo mundo peca, inclusive o papa – e muito”. Se o conceito de pecado hoje em dia está fora de moda, a ideia de erro pessoal persiste. Temos dificuldades em admiti-los, para nós mesmos e para os outros. Ao falar publicamente de suas fraquezas, o papa nos sugere que sejamos mais honestos e mais compreensivos, com nós mesmos e com os outros. “Quando éramos crianças, Jorge nunca foi o líder do grupo. Mas sempre teve muitos amigos”, diz sua irmã Maria Helena. O papa Francisco manteve o hábito de infância na vida adulta. Para amigos próximos, telefona com frequência religiosa. Com outros, mantém contatos ao menos anuais, ou em época de campeonato de futebol. “A amizade é uma grande dádiva de Deus”, disse ele, em carta a jovens de um seminário argentino. “Com ela, podemos conhecer o amor da diferença, sem barreiras, da ternura permanente. Deus não é mesmo maravilhoso?” Para o papa Francisco, a amizade é uma relação transformadora, de profundo engajamento, que requer atenção e doação. Em tempos de enorme trivialidade, como o nosso, essa é uma lição transformadora. Amizade não é apenas uma forma de entretenimento. Amigo não é apenas quem ri com você, mas quem conhece suas fraquezas, divide suas dúvidas e partilha suas dificuldades.
A cada 15 dias, sempre aos domingos, a argentina Clelia Luro espera. Aos 87 anos, com medo de sua audição falhar, ela fica próxima ao telefone e toma cuidado para que o rádio e a TV estejam baixinhos. Esse é o dia em que Jorge, um de seus melhores amigos, liga. Há 13 anos é assim. “Nossas conversas parecem reuniões de trabalho. Difícil fugir de discussões sobre política e religião”, disse ela a ÉPOCA. Eles não se veem desde o domingo 24 de fevereiro, 48 horas antes de Jorge embarcar para Roma. Eleito papa, o bispo Jorge Bergoglio adotou o nome de Francisco e ainda não conseguiu voltar a Buenos Aires. Mas as ligações não cessaram. Na última, tiveram uma discussão feia. Clelia achou loucura ele ter dispensado o carro blindado para desfilar pelo Rio de Janeiro durante a Jornada da Juventude. (leia mais sobre a operação de guerra para proteger o papa) “Disse a ele que tomaria um tiro”, afirma. Ao que o papa respondeu: “Não vou me esconder. Tenho de estar perto das pessoas. Não sou um faraó”. Clelia conheceu o papa quando ele, como bispo, foi visitar seu segundo marido, Jerónimo Podestá, doente em casa. Podestá também fora bispo e renunciou à Igreja para casar com Clelia, uma teóloga. “Seus pares na Igreja se afastaram. Sofremos todos os tipos de ameaça”, diz ela. Quando Podestá adoeceu, o bispo Bergoglio foi visitá-lo em casa e no hospital. “Depois de anos de rejeição, as visitas de Jorge foram um bálsamo para a alma do meu marido”, diz Clelia. “Nos tornamos amigos.”
Essa amizade e a maneira atenciosa como o papa a conduz ilustram três características notáveis de Francisco. Primeiro, mesmo depois de ser papa, ele continua a se comportar como uma pessoa normal. Segundo, ele dá imenso valor às relações humanas. Terceiro, pratica ativamente a tolerância com aqueles que discordam dele, como Clelia. Na mesma noite em que foi anunciado como papa, em 13 de março deste ano, houve sinais de que Francisco seria diferente de seus antecessores. Surgiu com roupas mais simples. Optou por um anel de prata, no lugar do ouro. Manteve a cruz e os sapatos modestos que sempre usou e dispensou os acessórios papais pomposos. Desde então, tem se confirmado como o papa da simplicidade e da austeridade. Um papa humilde que se preocupa com os humildes. Seu exemplo é uma força que se espalha rapidamente no interior da Igreja. “Os padres e os seminaristas estão birutas, no bom sentido”, diz o teólogo Fernando Altmayer, professor da PUC de São Paulo. “O modelo anterior de ascensão foi revogado.” Fora da Igreja, católicos e não católicos acompanham com interesse o comportamento de um papa que parece ter muito a ensinar ao homem comum, sobretudo em tempos de crise econômica e moral. A conduta de Francisco sinaliza desapego material, apreço pelas relações humanas e misericórdia – atitudes que ressoam mesmo entre os não religiosos. “Ele funciona por contágio”, diz a jornalista argentina Evangelina Hemitiam, autora da biografia A vida de Francisco, que acaba de ser lançada no Brasil pela editora Objetiva. “O efeito que ele provoca nas pessoas é revolucionário.”
O papa que chegou ao Rio de Janeiro na segunda-feira, dia 22, é um líder capaz de fazer o país repensar. No Brasil de 2013, que saiu às ruas em protesto contra o descaso de seus governantes, é o homem certo na hora certa. Seu exemplo de humildade e dedicação aos que sofrem, associado ao desprezo por luxo, conforto e privilégio, constitui uma espécie de repreensão silenciosa aos arrogantes que, no poder, agem como se tivessem direito a tudo. O exemplo de Francisco não mudará radicalmente o Brasil e nem tocará o coração de todos os brasileiros. Mas ele é capaz de inspirar e ensinar os que estiverem prontos a ouvi-lo.
1. VIAJE LEVE PELA VIDA
Evangelina Himitiam, a biógrafa do papa, diz, com certo exagero, que tudo o que ele tem na vida cabe numa mala. São discos, livros, um pôster de seu time do coração – o San Lorenzo, de Buenos Aires – e um crucifixo que ganhou dos avós. Francisco é desapegado, e isso lhe permite, nas palavras dela, “viajar leve pela vida”. Anda a pé, pega transporte público e, quando cardeal, não tinha carro oficial nem motorista. Esse voto de pobreza, diz o teólogo Altmayer, não é algo triste, pelo contrário. “Quem tem pouco é mais livre, mais feliz”, diz. Talvez essa fórmula não valha para todos. Mas ela pode nos ajudar a repensar o materialismo exagerado dos nossos tempos. “O ser humano está sufocado pelo capital material. As pessoas têm sede do capital espiritual”, diz Leonardo Boff, teólogo que acaba de lançar pela editora Mar de Ideais o livro Francisco de Assis e Francisco de Roma. “As mensagens que o papa passa com suas ações fazem sentido para o espírito”, afirma Boff.
2. DÊ IMPORTÂNCIA AOS VALORES
Em lugar do apego aos bens materiais, o papa Francisco tem valores. Desde a infância, sua biografia está repleta de elementos que demonstram isso. Ele começou a trabalhar aos 12 anos, porque seu pai considerava o trabalho essencial. Guardou isso com ele. Música e literatura também são paixões precoces que ele cultiva até hoje, como elemento essencial da existência. Da ética religiosa dos jesuítas, a ordem religiosa a que Francisco pertence, extraiu a decisão de levar uma vida modesta, dedicada aos necessitados. Ele acredita que ajudar os pobres enriquece objetivamente a vida das pessoas. Nem todos estão dispostos a viver assim, movidos pelo senso de missão e pela arte, mas o exemplo de Francisco deixa claro que um punhado de convicções, gostos e atitudes simples podem, muitas vezes, ser mais importantes que um vasto patrimônio. Ao longo da vida, somos capazes de guardar coisas mais valiosas que os nossos bens.
Perguntaram certa vez ao bispo Jorge Bergoglio, futuro papa Francisco, o que ele levaria correndo em caso de incêndio. Sem hesitar, ele respondeu “a agenda e o breviário”. No breviário, organizava suas obrigações como sacerdote. A agenda continha seu bem mais precioso, os dados de centenas de pessoas com quem ele se relacionava, de preferência pessoalmente. A vida do homem que viria a ser papa é marcada por uma relação intensa e generosa com todos a seu redor. Isso fez com que ele deixasse marcas na vida de milhares de pessoas. Quando anunciou que seria padre, aos 19 anos, três amigas choraram, antecipando sua ausência do bairro e da turma. Uma mãe que perdeu a filha de 24 anos num acidente se lembra do e-mail, totalmente inesperado, que recebeu do cardeal Bergoglio. Um operário se lembra com orgulho de que ele se sentou a sua mesa para comer com sua família. Na agenda de Francisco há artistas, militantes, políticos, sindicalistas e empresários, assim como catadores de papel e imigrantes ilegais. A mensagem da vida voltada para os outros é que é possível, talvez necessário, envolver-se com aqueles que estão a nosso redor. Sair da zona de conforto da família e participar da vida de mais gente – e convidá-las a fazer parte de nossa vida.
4. FREQUENTE A RUA
Nos primeiros dias depois do conclave, Francisco afirmou que não deixaria a rua. “Sem isso, viro um rato de sacristia”, afirmou. A frase reafirma uma prática que ele iniciou ainda antes de se tornar padre. Seus amigos de adolescência contam que, aos 17 anos, já perambulava pelo bairro onde morava, visitando áreas mais pobres. “Ele se interessava pelas causas sociais antes mesmo de se dar conta disso”, diz Pablo Romano, amigo de colégio. Francisco nunca deixou de andar a pé. “O fato de não usar carro permitia criar mais laços com a comunidade e enxergar questões que ele de outra forma não veria”, diz Evangelina. Nas palavras do próprio papa, “andar pela rua e misturar-se ao povo esclarece e humaniza”. Para as pessoas comuns, o exercício de caminhar e se misturar amplia o senso de realidade e ajuda a tomar pulso da cidade e da sociedade em que se vive. Ainda é na rua que a vida pública acontece, com suas alegrias e contradições. Quem não quer se distanciar da maioria da sociedade em que vive deveria caminhar pelas ruas com frequência – ainda que elas não estejam na aprazível Buenos Aires.
5. SEJA COMUM E EXTRAORDINÁRIO
Quem procurar na biografia do papa Francisco indícios de um comportamento raro e excepcional não encontrará. Desde muio jovem, ele sempre esteve inserido nos grupos em que participava como uma pessoa comum. Jogava bola, dançava, convivia com os amigos. “Ele ia bem na escola, mas não me lembro dele como um menino extraordinário, e sim como parte da turma”, afirma Ernesto Lach, um colega de classe. Seu segredo, ao longo de toda a vida, foi a inserção – na família, na escola, no grupo de amigos, na igreja. “Ele tem um estilo de liderança discreta”, diz Evangelina. Na verdade, Francisco nunca teve medo de ser mais um, de misturar-se a seus pares e ao homem das ruas, de ser mais um entre eles. Em nossa época de individualidade exaltada, em que cada um é estimulado a ser excepcional, único e insubstituível, é reconfortante perceber que o homem que chegou ao posto religioso mais importante do mundo nunca fez questão de parecer diferente daqueles que o cercavam – e nisso, talvez, resida sua imensa originalidade.
6. CULTIVE A DIFERENÇA
O papa Francisco foi a principal autoridade da Igreja Católica a se aproximar de líderes de outras religiões na Argentina. “Ele se move de forma horizontal, conhece muita gente, está próximo das pessoas, sejam elas católicas ou não”, diz a biógrafa Evangelina. Evangélica, ela é amiga e admiradora do papa. A história de Francisco está repleta de exemplos de abertura ao diálogo com pessoas e instituições com valores diferentes dos seus. Durante a ditadura argentina, ele convivia com os diferentes grupos que lutavam pela hegemonia ideológica no interior da Igreja, assim como dialogava com o governo militar e com as famílias de desaparecidos. No ano passado, ainda cardeal, acendeu velas durante as festividades de Hanucá, a festa das luzes judaica. Recentemente, durante a primeira cerimônia de lava-pés que conduziu como papa, quebrou dois protocolos. Num ritual feito tradicionalmente entre homens, escolheu banhar os pés de duas mulheres. Uma delas era muçulmana. A atitude provocou debate. O papa não se explicou. Em seu sermão, ressaltou a importância de servir e ajudar, seja quem for. “Foi um aceno claro de sua disposição em dialogar e fazer alianças”, diz Leonardo Boff. A lição para os leigos é óbvia: quem sabe ouvir ganha respeito. Pessoas que pensam diferente de nós não são necessariamente adversárias ou inimigas. Suas opiniões e experiências não deveriam apenas ser toleradas, mas contempladas com atenção e respeitadas. Ideias diferentes das nossas nos enriquecem.
7. VALORIZE A FAMÍLIA
8. NÃO TENHA VERGONHA DE SER HUMILDE
9. RECONHEÇA SEUS DEFEITOS
10. CUIDE DE SEUS AMIGOS
Reportagem por FLÁVIA YURI OSHIMA
Fonte: REvista Época on line.
Nenhum comentário:
Postar um comentário