Aos poucos o sol ardido e o calor vão ficando para trás. A vegetação da Serra do Mar surge e, com ela, o ar flui fresco e úmido nos pulmões. O conjunto de pedras gigantes e azuis da serra acompanha o caminho que, serpenteando em curvas cada vez mais estreitas e sinuosas, leva ao distrito de Araras, em Petrópolis. É rápida a viagem entre o Rio e a cidade onde d. Pedro II mandou construir seu palácio de verão. Menos de uma hora. Seguindo as instruções de um mapa, o motorista sai da pista principal no km 65. Dali, o carro deve seguir uma reta até ver a placa pendurada na porta, indicando a entrada do Restaurante Trigo. Imerso na mata, o restaurante funciona em uma casa com vários ambientes internos e uma agradável área externa coberta. O teólogo, filósofo e ex-frade franciscano Leonardo Boff já está acomodado em uma mesa quadrada, de madeira maciça, nesse lado de fora, bebendo uma caipirinha de lima com vodca. Com a entrada dos repórteres, levanta-se, sorri e brinca: "Foram pontuais, não?"
"São 13h30", Boff volta a brincar: "Vocês sabem que as crianças me confundem com Papai Noel? Não há criança que não me diga isso. E eu sempre digo que sou o irmão de Papai Noel". É indiscutível a semelhança física entre o teólogo e a imagem do velhinho que distribui presentes na noite de Natal. Aos 75 anos, Boff é um senhor de cabelos completamente brancos, lisinhos e despenteados com absoluta naturalidade. Tem uma barba longa, também branca, e usa pequenos óculos com armação retangular e prateada. Veste uma camisa verde-clara, uma calça de veludo verde-escura, usa sapatos esportivos e suspensórios. E, neste começo de tarde cálido e luminoso na serra, está com pressa. Não para terminar a entrevista. Mas para começar a falar e contar a novidade: "O papa Francisco pediu que lhe enviasse alguns textos meus sobre ecologia e o livro que escrevi e está sendo lançado agora. Ele quer ler o material nos dias em que ficará no Brasil".
O livro é "Francisco de Assis e Francisco de Roma - Uma Nova Primavera na Igreja?" Em 72 páginas, analisa as primeiras palavras e gestos de Francisco nestes quatro meses de pontificado. E, embora o título termine com uma pergunta, Boff tem poucas dúvidas de que a Igreja Católica, depois da eleição do "papa que veio do fim do mundo", está entrando na primavera e nunca mais será a mesma. "Francisco pode, literalmente, ser o papa do fim deste mundo. Deste mundo que privilegia o material, que sacrifica e martiriza povos inteiros. Ele é o papa da ruptura", afirma.
Foi ao tornar-se franciscano que Genezio Darci Boff recebeu o nome Leonardo. "Estava tão nervoso que só três horas depois da cerimônia percebi que meu nome tinha trocado." Ele nasceu em 14 de dezembro de 1938, em uma família com mais dez irmãos, filhos de Mansueto e Regina, que viviam em Concórdia, município na região do Alto Uruguai, oeste de Santa Catarina. Ao saber que o cardeal argentino, o jesuíta Jorge Mario Bergoglio, escolhera o nome Francisco, Boff exultou: "Ele mostrou que é um pastor e, como já percebemos, dedicará seu papado à pobreza, à humildade, aos rejeitados socialmente. Não quer ser chamado de Santidade. Conduzirá a igreja ao lado do povo. A igreja precisa ser um lar espiritual".
Os textos e o livro com dedicatória foram entregues ao cardeal arcebispo do Rio, d. Orani Tempesta, que os faria chegar ao papa. Boff conheceu o padre Bergoglio em 1970, em um congresso sobre espiritualidade. Mas a curiosidade pelo material foi despertada em Francisco por uma grande amiga em comum entre ele e Boff, a teóloga argentina Clelia Luro, de 85 anos, que mora em Buenos Aires.
Com nossos pensamentos,
via Comunidades Eclesiais de Base,
estou convencido de que ajudamos
a criar algo mais democrático
Na década de 60, Clelia, divorciada e mãe de quatro filhas, casou-se com o bispo argentino Jerónimo Podestá. Ele renunciou meses depois. Mas o caso escandalizou o clero argentino na época. Podestá foi isolado completamente da vida social. Um dos poucos que falavam com ele era Bergoglio, que foi fiel até o fim da vida do amigo, a quem deu a extrema-unção. Boff, por sua vez, fez a apresentação do livro "Las Cartas de Clelia y Jerónimo Podestá", em que ela resgata a correspondência trocada com o marido, com organizações sociais e com o próprio Bergoglio. "Francisco, carinhosamente, a chama de 'bruja' [bruxa em espanhol], porque quando ele foi a Roma, para a eleição do papa, ela avisou: 'Compra só a passagem de ida. Serás eleito e não vais voltar'".
A conversa já passava de meia hora, quando Boff lembrou que a entrevista seria publicada na seção "À Mesa com Valor" e, portanto, comentou: "Nós viemos comer, não? Vamos pedir alguma coisa? Afinal, a entrevista não é para a seção à mesa vazia". Primeiro, as bebidas. Ele recomenda a "espetacular" caipirinha de lima com vodca. Fotógrafo e repórter pediram uma - com dois canudinhos para dividir o copo bem generoso -, um refrigerante e um suco de laranja. Entre as opções de entrada, o convidado assegurou que não havia forma de resistir aos bolinhos de mandioca recheados com carne-seca. Confirmados os bolinhos, são escolhidos também dois rosbifes com molho de laranja e uma truta grelhada com molho de ervas. Os acompanhamentos arroz, salada, purê de abóbora e batata "rösti" serão "socializados" entre todos.
Com o pedido do almoço garantido, Boff retoma a conversa sobre Francisco. O teólogo não crê que o interesse do papa pelo livro e até a possibilidade de um encontro - que chegou a ser cogitada durante esta semana que Francisco passa no Brasil - signifique uma aproximação mais consistente com a Teologia da Libertação. E faz questão de deixar muito clara essa certeza. "A agenda era difícil. O mais importante para ele é encontrar o povo. Mas não pense que ele queira falar comigo. Enquanto viver o papa Bento XVI, encontrar-me seria uma desfeita a ele, criaria um constrangimento... Francisco não deve me convidar. É uma questão de política eclesiástica. Entendo e respeito. Fico contente que ele tenha pedido o livro e queira ler."
Mais importante do que o encontro, observa Boff, é o fato de Francisco dar sinais de reconhecer uma geração de teólogos latino-americanos, cujos pensamentos deram origem à Teologia da Libertação. "Francisco sabe que aqui está a prata da casa." Nascida nos anos 60, a Teologia da Libertação arrebatou religiosos no mundo inteiro. Vivia-se o auge da Guerra Fria e o planeta se dividia entre a influência da ex-União Soviética e a dos Estados Unidos. Na América Latina era um período da história em que ditaduras militares dominavam o continente. Contrapondo-se ao clero conservador, os seguidores da Teologia da Libertação defendiam uma igreja militante, voltada aos pobres, aos desassistidos e aos oprimidos políticos. Eram combatidos pelos que criticavam as teses, consideradas afinadas demais com os pensamentos defendidos pela esquerda.
Não foram poucos os padres e freiras que se envolveram em lutas, nas cidades e no campo, contra regimes totalitários em países como Brasil, Nicarágua e El Salvador. Entre eles estavam o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, considerado o fundador do conceito Teoria da Libertação, Frei Betto e o próprio Boff. "Somos dessa geração de resistência, de oposição aos regimes ditatoriais, comprometida com a libertação dos pobres, resistimos às ditaduras. Com nossos pensamentos, via Comunidades Eclesiais de Base e outros, estou convencido de que ajudamos a criar algo mais democrático. Nosso projeto nunca foi o socialismo nem uma igreja marxista, como dizem. Isso era uma ilusão", afirma. E o que era? "Pensamos sempre numa democracia que tivesse expressão popular e fosse na linha do pensador português Boaventura de Sousa Santos: começa na família, marido e mulher, passa para as escolas, os sindicatos, os partidos, e chega ao governo. Porque, fundamentalmente, democracia é participação."
A Teologia da Libertação ou Igreja da Libertação, como prefere Boff, chegou ao século XXI sem a relevância que teve em outros tempos. Em parte porque foi duramente combatida pelo Vaticano, em especial depois da eleição de João Paulo II, fervoroso anticomunista, em parte pelas mudanças que aconteceram no mundo a partir da queda do Muro de Berlim. Antes disso, porém, Boff e outros religiosos já tinham sido inquiridos e silenciados. Em 1984, o então frade Leonardo Boff foi submetido a um processo por causa das teses e ideias que defendera no livro "Igreja: Carisma e Poder", publicado em primeira edição em 1981. Os 13 ensaios tratavam da inflexível hierarquia da Igreja Católica, dos dogmas, do conservadorismo, e o Vaticano reagiu. Em 1984, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício), cardeal Joseph Ratzinger - que viria a ser o papa Bento XVI -, interrogou Boff, sentado na mesma cadeira na qual Galileu Galilei, em 1616, foi repreendido por defender que a Terra girava ao redor do Sol. Ratzinger tinha sido colega e amigo de Boff.
A primeira condenação ao teólogo brasileiro previa um "silêncio obsequioso". A segunda, já na década de 90, determinava que deveria deixar de lecionar teologia, era proibido de dar entrevistas e recomendava que fosse para algum país como Filipinas ou Coreia do Sul por uma temporada. Ele se recusou a aceitar e deixou, sem arrependimento, a Ordem dos Frades Menores, fundada por São Francisco de Assis, à qual pertencia desde 1959.
Essa desavença tão profunda com Ratzinger, acredita Boff, é hoje o principal entrave para a reconciliação. Afinal, como poderia o papa Francisco resgatar mais de 500 teólogos silenciados no mundo inteiro por "essa máquina de controle e punição" sem afrontar seu antecessor, ainda vivo? "Não creio que isso possa acontecer", diz, desviando o olhar para o garçom, que chega com os quatro bolinhos de mandioca. São visivelmente crocantes e, abertos ao meio, exibem o cremoso recheio de carne-seca. Boff escolhe um e cobre o petisco com uma generosa porção de pimenta. "Vamos comer, gente. Isto é muito bom. Muito boa também é a pimenta. Sou um homem da pimenta." E aí surge um dilema: se os bolinhos são quatro e os comensais à mesa, três, sobrará um. Quem vai ficar com ele? O teólogo resolve: "Vamos deixar com a repórter. Damas sempre têm preferência".
Mesmo assim, ele preserva Lula, que considera um homem perspicaz, com discurso correto e a palavra certa. O partido, porém, terá que mudar se quiser continuar governando, segundo ele. "O PT se apresenta como uma resposta ao Brasil que queremos. É um equívoco. O Brasil que queremos é muito mais do que o PT pode apresentar."
A decepção com os partidos políticos e os governantes, acredita Boff, ajudou a encorpar o caldo dos protestos e manifestos que tomam conta do país há mais de um mês. Na sua opinião, esse povo não quer mais o atual modelo de "participação subordinada". Pessoas que, nas suas palavras, já não têm fome de pão, mas de cidadania, transporte, saúde, educação, direitos reconhecidos e dignidade. "Dizem que o Brasil incorporou uma população do tamanho da Argentina ao consumo. É fato. Mas é preciso mais. As pessoas querem uma vida simples e digna." E é aí que entra o encanto por homens como Francisco. "Um papa vindo da periferia do mundo é festejado porque mostra que está ao lado dessas pessoas, reforçando esse modelo de vida inspirado em São Francisco de Assis. É um papa que nos traz um projeto ousado e sinaliza as profundas transformações que devem inaugurar o terceiro milênio da Igreja Católica."
Boff termina a caipirinha e o garçom reaparece com o almoço. "Sou carnal e carnívoro, como todo bom franciscano", define-se o teólogo, festejando o prato. O rosbife ao molho de laranja está finamente fatiado. O teólogo põe um pouquinho de cada um dos acompanhamentos, pica tudo e empresta o prato para a foto. "Você sabe que as pessoas dizem: 'Comeu como um frade'." A comida, os temperos e o molho da salada são o tema da conversa, quando chega Maria de Miranda, jovem filha dos donos do restaurante, Marco Antônio de Miranda e Beatriz Simões Lopes de Miranda, a Bia. A família é amiga de Boff, que frequenta com assiduidade o local inaugurado há 30 anos.
Pouco depois, chega Marco Antônio. Ele é fotógrafo e com Boff publicou um livro chamado "Terra América". São as imagens de uma viagem pelo continente americano, de polo a polo. O teólogo escreveu os textos, em que fala de uma de suas maiores preocupações: a preservação da Terra e da natureza.
"Temos que cuidar da Terra. Ela pode continuar sem nós, coberta de cadáveres. Não poderemos viver sem ela." Ele participou do grupo envolvido no estabelecimento da "Carta da Terra", aprovada pela Unesco em 2008 e adotada pela ONU. O documento faz uma análise da situação do planeta e defende uma aliança global que evite a destruição da natureza e da diversidade da vida. "Sinto que o papa Francisco está sinceramente preocupado com essa questão. Não acho impossível que ele pense numa encíclica sobre o tema. Antes disso, no entanto, o papa terá que enfrentar as reformas na Cúria Romana e, principalmente, a do papado, que já começou a fazer."
Bia convida os repórteres para conhecerem melhor o lugar. O sítio era do avô, que há 80 anos plantou na entrada o abeto cujos galhos mais altos hoje parecem encostar no céu. A casa fica onde era a cocheira. As janelas são coloniais, há várias salas, lareira e uma decoração com peças simples, rústicas. Na porta de entrada, uma linda lanterna, dessas que enfeitam as festas juninas. "As festas já passaram e fico com pena de tirar." O teólogo e a mulher, Márcia - com filhos e netos que vão e voltam -, moram desde 1998 em um condomínio a poucos metros do restaurante. O lugar é privilegiado. A brisa sopra com suavidade, os passarinhos cantam e pequenos lagartixas correm de um lado para outro das paredes. Mas Boff passa quase a maior parte do tempo viajando. São conferências, visitas e aulas como as que ele marcou para esta semana em Santa Catarina e o manterão fora do Rio durante a Jornada Mundial da Juventude.
O convidado abre mão da sobremesa e pede o café. Os repórteres dividem uma torta de nozes, coberta por creme fresco. As calorias valem a pena. Chegam os três cafés e a fumaça do cigarro de Bia traz uma curiosidade: "O senhor fuma?" O teólogo responde que nunca fumara cigarros, mas já sucumbira diante dos charutos Cohiba enviados de Havana por Fidel Castro. "Eu fumava um e os demais trocava por aqueles Oxóssi, que são usados nas macumbas. Valia a pena. Os Cohibas são caríssimos", conta, dando risadas.
No alto da serra, mais cedo do que nas planícies, o sol começa a desaparecer atrás das montanhas. A temperatura cai. O fotógrafo pede a Boff que fique na entrada do restaurante para mais fotos. O senhor de barbas brancas tem quatro próteses nas pernas e alguma dificuldade para andar. Mas não recusa o pedido. Posa aqui, posa lá. A lua já está no céu quando volta para a mesa. Mais um café? Sim. O garçom recolhera quase tudo. O copo de caipirinha que os repórteres pretendiam dividir, no entanto, ainda está por ali e quase cheio. Boff, então, faz o "sacrifício" e bebe.
Formado em filosofia, teologia e doutorado na Universidade de Munique, na Alemanha, Leonardo Boff já escreveu 93 livros e passou pelas mais importantes instituições de ensino do mundo. De uns tempos para cá, entretanto, pensa em uma vida não tão intensa. "Vou completar 75 anos. Sou oficialmente velho. Quando nos sentimos velhos, precisamos começar a planejar que temas abordar, que obras escrever ainda e como arredondar o pensamento. Meu tempo físico está se acabando." Boff acha que chegou a hora de as novas gerações levantarem as bandeiras que foram erguidas por sua geração. Um discurso, de certa forma, no mesmo tom do primeiro pronunciamento oficial no Brasil do papa Francisco, que disse: "A juventude é a janela pela qual o futuro entra no mundo e, por isso, nos impõe grandes desafios. A nossa geração se mostrará à altura da promessa contida em cada jovem quando souber abrir-lhes espaço".
A tarde e a torta de nozes acabaram. É difícil terminar a conversa com esse professor de fala pausada e clara, apesar de estar na hora de descer a serra e voltar para o Rio. É possível, porém, uma pergunta ainda: o senhor deixou o sacerdócio, mas diz nunca ter se afastado da igreja. O senhor é um homem de fé. Em um mundo com tantos dramas sem explicação, o que é a fé?
"A fé é uma esperança daquilo que vai acontecer. É uma convicção sobre as coisas invisíveis. A fé é uma espécie de aposta, na linha de Pascal [o matemático e físico Blaise Pascal]. Ele teve uma crise existencial e se converteu ao cristianismo. Dialogando com os ateus da época, os iluministas, disse: 'Faço uma aposta. Crer é apostar. Se você aposta que Deus existe, tem tudo a ganhar, a eternidade etc. Se você apostar que Deus não existe, não tem problema, não perde nada. Então, é melhor acreditar que ele existe. Não se perde nada'."
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