Devo dizer que não gosto de domingos nem de cachimbos, mas sei que o errado sou eu, não eles
"Hoje é domingo, pé de cachimbo", eu cantava, quando era pequeno, e me vinha à cabeça uma árvore de madeira escura, com pencas de cachimbos pendendo das pontas dos galhos, prontos para serem colhidos e fumados. Fiquei um pouco desapontado, lá pelos dez anos, ao descobrir que o certo era "pede" cachimbo. Corrigi a música, mas o domingo, não: pra mim, ele continua sendo esse quadro pintado por Magritte e Dalí, com sua frondosa oferta de descanso e generosa sombra de melancolia.
Devo dizer que não gosto de domingos nem de cachimbos, mas sei que o errado sou eu, não eles. Queria muito ser uma pessoa que acorda cedo, que vai ao parque. Um desses caras que eu vejo do carro, pedalando pela ciclovia, a mulher ao lado e um filho atrás, em sua bicicletinha. Dá uma alegria vê-los ali, passeando pela cidade. Enquanto permanecem no meu retrovisor, parece que o mundo é justo e que cada coisa está em seu devido lugar. É mais ou menos o que sente, imagino, o sujeito que chega à varanda, ao fim de um dia de trabalho, ou afunda na poltrona, meditabundo, para fumar o seu cachimbo.
Escrevo "meditabundo" e, por um momento, quase comungo desta alegria dominical, tirando as palavras velhas do armário para tomarem sol ou pitando-as calmamente, sem tragar, só para saboreá-las. Mas, meditabundo que me encontro --é domingo--, a sombra do pé de cachimbo logo me alcança: não sou esse homem na ciclovia nem esse outro, em sua varanda, em sua poltrona, com o vento no rosto ou a fumaça na boca, displicentemente instalados no presente.
Acho que, no fundo, tenho dificuldades é com o presente. Outro dia, reparei que sempre escovo os dentes com pressa, como se estivesse atrasado para um compromisso. Que compromisso é esse? Não sei. É como se houvesse nascido atrasado, chegado ao mundo meia hora depois e a todo instante tentasse recuperar os minutos perdidos. Talvez por isso me sinta mais acolhido nos dias de semana, dedicados ao trabalho e suas promessas.
Alguma hora, ali adiante, a crônica estará pronta, o livro estará editado, o roteiro estará filmado e a concretização desses projetos, acredito, me trará sei lá que conforto, sei lá que certeza sobre mim mesmo --mas nunca traz. Por que se agoniar olhando para a direita do ponto final em vez de se contentar com o que há à esquerda? (Um dia, estarei eu à direita do ponto final e aí não haverá mais o que olhar.)
Ano passado, comprei uma bicicleta. Ao tirá-la da caixa, senti certa vergonha de mim mesmo, como um velho que sai da loja calçando All Stars vermelhos: aquilo não era eu, nem poderia mudar-me. Por meses a bicicleta se tornou só mais uma pequena emissora de ansiedade --preciso usar essa bicicleta, preciso usar essa bicicleta, preciso...--, depois seus pneus murcharam e eu soube que já não era por ela que eu escovava os dentes com pressa.
Talvez eu devesse comprar é um cachimbo. Nem que fosse para enterrá-lo no jardim, regá-lo todo dia e ficar na varanda, olhando pra grama e esperando, num exercício zen, em busca da paz interior. É isso: preciso comprar um cachimbo, preciso comprar um cachimbo, preciso.
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