Rodrigo Petronio*
Em uma das minhas caminhadas cotidianas, fui surpreendido por uma pergunta um tanto estranha. Para não dizer mórbida. Supondo que Deus exista, qual seria o tamanho de Deus? Não é uma "boutade". Esse problema, se podemos chamá-lo assim, perturbou as mentes e os corações de centenas de teólogos, filósofos e cientistas ao longo dos últimos três mil anos. E tudo isso por causa da complexa relação existente entre grandeza e pequenez. É difícil não olharmos ao redor sem realçar a presença marcante dessas dimensões.
Em uma das minhas caminhadas cotidianas, fui surpreendido por uma pergunta um tanto estranha. Para não dizer mórbida. Supondo que Deus exista, qual seria o tamanho de Deus? Não é uma "boutade". Esse problema, se podemos chamá-lo assim, perturbou as mentes e os corações de centenas de teólogos, filósofos e cientistas ao longo dos últimos três mil anos. E tudo isso por causa da complexa relação existente entre grandeza e pequenez. É difícil não olharmos ao redor sem realçar a presença marcante dessas dimensões.
Adorno percebeu que até mesmo os valores precisam ser enxutos para ter eficácia. Por isso a sua "minima moralia". Como diria o filósofo e matemático Whitehead, pensamos em ideias gerais, mas vivemos o detalhe. O infinitamente grande tende a obscurecer a imaginação. Torna nossas faculdades cada vez mais genéricas. Dissipa-nos. Pensar nos bilhões e bilhões de constelações do Universo é um exercício de variáveis. Sonhar com o cosmo contido no grão de areia e com a flor silvestre abrangendo a amplidão celeste é obra de um poeta excepcional, como William Blake.
Talvez esse seja o motivo de Leibniz, uma das mentes mais brilhantes do século XVIII, ter se lançado com tanta ênfase à pesquisa do cálculo infinitesimal. Talvez por isso Pascal, no século XVII, após dissolver a natureza no abismo de espaços infinitos, tenha chegado à conclusão de que somos tudo perante o nada e nada perante o infinito. O homem não passaria de um caniço pensante. O infinitamente grande nos distancia da experiência mais primária. Obseda um contato afetivo. Torna-se uma conjectura. Liga-se à visão e à audição, os sentidos mais abstratos e espirituais, segundo Santo Agostinho. O infinitamente pequeno parece estabelecer uma estranha e invisível cumplicidade com o tato.
Seria o reino dos céus dos pequeninos? Há um mistério no ínfimo. De tal ordem que nos sugere realidades espirituais inenarráveis. São conhecidas as imagens de Cristo ao tratar de seu reino como um grão de mostarda. E a equívoca alegoria do camelo e do buraco da agulha. As enormes e policrômicas mandalas budistas, feitas com grãos de areia, destinam-se a ser dispersas pelo vento, tão logo estejam prontas. É constante na tradição taoísta comparar o ser humano a uma folha, um grão, um fruto, um inseto, uma semente ou mesmo a um verme. Os jainistas, uma antiga vertente do hinduísmo, têm o costume de andar com uma varinha amarrada na cintura, varrendo o chão à sua frente. Fazem-no para evitar pisarem em uma formiga ou um grilo, que, como tudo, contêm a centelha de Brahma.
Em uma parábola bíblica, Jesus chega a uma casa. Enquanto Maria se prostra de joelhos e o enaltece como o Salvador, Marta corre para apanhar água em uma bacia e tratar seus pés feridos. Na sua magistral interpretação, o místico Meister Eckhart nos diz que a atitude de Marta é muito mais sublime do que a de Maria. Pois amar a humanidade ferida de um Deus feito homem é muito mais espiritual do que adorar a divindade de um homem que se proclama Deus.
Para Eckhart, o pequeno gesto humano sobrepuja em virtude o grande gesto de adoração de Jesus como Deus, porque envolve mais desprendimento. Amar o desprendimento como essência da experiência espiritual fez de Eckhart um dos maiores místicos da humanidade. Por essas e outras interpretações, condenado pelo Santo Ofício, Eckhart desaparecera misteriosamente na floresta às margens do Reno. Talvez tenha se dissipado. Evanescido na luz. Talvez tenha retornado às trevas luminosas da deidade. Quem sabe fora sorvido por Deus em um botão de rosa ou nas ínfimas partículas da seiva vegetal.
A enormidade espiritual da pequenez ainda vai mais longe. Os egípcios inseriam escaravelhos-coração, amuletos de ametista em forma de escaravelho, dentro do peito das múmias. Concebiam esse pequeno animal como um guia dos Campos de Juncos, no mundo do além. Ele também o é para a tradição alquímica chinesa. Para os cabalistas, todo o Universo está contido na primeira letra do alfabeto hebraico. Não por acaso, a cabala é a fonte direta do magistral conto de Borges, "O Aleph", no qual o orbe pode ser visto, com todos os seus seres e atributos, em três dimensões, em todos os seus aspectos e em todas as suas perspectivas, em um minúsculo ponto no porão da casa de Beatriz Viterbo, na rua Garay, em Buenos Aires.
O padre Antonio Vieira, imperador da língua portuguesa, segundo Fernando Pessoa, dedicou um de seus mais engenhosos sermões a tratar do círculo do ventre de Maria. Seu fascínio era supor como a esfera de um ventre do tamanho de um punho pôde circunscrever Deus. Para explicá-lo, usa sem sucesso algumas das mais agudas metáforas da oratória e todos os recursos da filosofia escolástica. O mesmo ocorre com as imagens hiperbólicas do cardeal Nicolau de Cusa, no século XV, ao descrever Deus como infinitamente grande e infinitamente pequeno, por coincidência dos opostos.
Essa ênfase no enigma oculto do mínimo está presente até em uma das frases mais convencionais da história das ideias: Deus está no detalhe. Atribuída a autores tão díspares quando Platão, Vitruvio, Paul Valéry e Mies van der Rohe ou relegada a um divino anonimato, a frase designa a força da minoridade na dimensão intelectual humana. O impacto que o minúsculo exerce sobre nossos afetos.
Por outro lado, a pequenez pode ser uma ambígua forma de baixeza. O antropólogo alemão Hans-Jünger Greschat relata seu desconcerto ao chegar à Índia e ver ascetas se banhando em um esgoto com fezes. A biógrafa Karen Armstrong nos lembra que Buda, antes de chegar à via do caminho do meio, teria vivido durante anos com os "biddhus", ascetas radicais da floresta, alimentando-se dos próprios excrementos e atingido níveis infra-humanos de automortificação. Se tudo tem Brahma, desde as realidades celestes macrocósmicas até os seres mais vis, nada pode ser desprezado.
Em um contexto cristão do século XIII, a beguina Angela de Foligno, talvez radicalizando a parábola bíblica de Marta e Maria, assina surpreendentes descrições de seu tratamento dos leprosos. Após lavar os pés dos doentes, bebia a água viscosa. E confessa ao leitor: aquela era sua hóstia. Aquela era a sua comunhão.
Mas nem tudo é grandeza no mundo da pequenez. Por isso, Voltaire confessava-se estupefato ao imaginar como as mentes religiosas conseguiam ver Deus em um repolho. No começo da década de 1990, os "brights", mais conhecidos como novos ateus, lançaram uma cruzada antirreligiosa protagonizada pelo biólogo Richard Dawkins, pelo filósofo Daniel Dennett e pelo brilhante polemista britânico Christopher Hitchens, entre outros pensadores.
A despeito das generalizações de toda polêmica, uma das propostas de Dawkins é a de uma espiritualidade laica. Para ele, a observação racional do espetáculo do universo e da evolução é de per se uma epifania. Para além do ateísmo virulento que o notabilizou, Dawkins na verdade propõe uma religião minimalista. A simples consciência cotidiana de nossa ancestralidade animal e da maravilhosa formação do cosmos é, em si mesma, uma atitude espiritual.
Mas é Hitchens quem chega, em um de seus livros, a uma fórmula insuperável: Deus não é grande. A lucidez de Hitchens é cortante. A fé, em seu impulso enaltecedor, não apenas amesquinha Deus. Também nos impede de ver Deus nas menores partículas de nossa vida. Mesmo os teólogos não podem negar que há muita razão nesses argumentos. Afinal, nada menos divino do que reduzir Deus a uma mera questão de abrangência. Nada mais frívolo do que quantificar o infinito de sua misericórdia. Nada mais humilhante para Deus do que depender de nós para dimensionar sua grandeza.
Em um pequeno nódulo de lama chamado Terra, perdido em meio a bilhões de galáxias, em uma fração desprezível de tempo, uma criatura igualmente desprezível, chamada ser humano, cria algo chamado conhecimento. Esse foi o momento mais arrogante da história do universo. Essa exuberante intuição de Nietzsche sobre a origem do conhecimento como um delírio de grandeza guarda mais sabedoria do que toda a grandiosa história da filosofia.
Apenas os ressentidos se vingam da indiferença do universo criando para si o álibi da grandeza. Apenas os medíocres se deslumbram com a grandeza. Os grandes são grandes justamente por nunca perder de vista a própria insignificância. Um dos escritores máximos do século XX, Elias Canetti confessou-se farto de cavalgar o cavalo da presunção. E arrematou: "Nem sequer cheguei a me tornar um ser humano".
Em "O Sacrifício", filme-testamento de Tarkovsky, retemos o seguinte ensinamento: se repetirmos um pequeno gesto, todos os dias, como em um ritual, algo no mundo vai mudar. A repetição infinita de pequenos gestos não gera um acúmulo de gestos. Gera um milagre. Para a gestação desse milagre, é preciso que enfim despertemos para a presença desse ínfimo Deus que mal se distingue de nossa condição mortal.
Talvez resida nessa pequenez humana, demasiado humana, indefinidamente repetida, o futuro misterioso e promissor da espécie. Quando abandonarmos de vez as ilusões vazias das ideologias, das religiões e das utopias, quem sabe consigamos enfim enxergar os pés feridos daquele que bate à nossa porta.
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Rodrigo Petronio é escritor, professor da Faap e da Casa do Saber. Autor dos livros "Venho de um País Selvagem" (Topbooks, 2009), "Pedra de Luz" (A Girafa, 2005), entre outros. Organizou os três volumes das "Obras Completas" do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva (Editora É, 2010)
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