quinta-feira, 17 de abril de 2014

" Nossos bichinhos "

texto Eugenio Mussak

- É aquela ali, ó. Sei que gosta de bichos, parece ter coração mole e dá pra ver que é uma pessoa de atitude.



Foi assim que o funcionário do estacionamento falou com seu colega, referindo-se à Lu, que eventualmente deixava ali o carro para lavar. É que eles tinham encontrado em um canto escondido do estacionamento um gatinho magro, molhado a assustado, evidentemente perdido ou abandonado, e não sabiam o que fazer com ele. A Lu era a solução, afinal, parecia ter “coração mole e atitude”, a combinação perfeita para resolver aquele problema.



Dito e feito. O ar de desamparo do bichano foi o gatilho que acionou o tal “coração mole” da amante de bichinhos e desencadeou a ação correspondente, providenciada pela “atitude” da executiva bem sucedida.



Quando ela o pegou no colo, o destino falou Bingo!, e do estacionamento, o sortudo gatinho foi direto para o Pet Shop, onde a veterinária Beth, que às vezes, brincando, chamamos de pediatra, pois cuida de nossas cachorrinhas desde que eram filhotinhos travessos, o examinou e medicou. “Ele só está faminto e estressado”, explicou ela. Mas tarde ela iria diagnosticar outro problema em seu pacientezinho…



Liberado pela veterinária, Bento (esse é seu nome) foi devidamente adotado, com direito ração, cama, poste arranhador, caixa de areia e, o mais importante, muito amor. Além disso, ele ganhou a companhia da Shih Tzu Preta e da Maltês Branca nossas cachorras que sempre foram as proprietárias do território.



Dizem que as pessoas são divididas entre as que gostam de cachorros e as que gostam de gatos. As que gostam de cachorros seriam mais carentes, por isso adotam bichos que dão mais atenção, paparicam, fazem festa quando chegamos. Quem gosta de gatos é mais resolvido, precisa de menos validação afetiva. Se é assim, então sou um carente, pois sempre preferi cachorros. Na verdade, o que sempre me encantou foi a imensa capacidade de comunicação e interação que os cães têm conosco. Lembro de meus cachorros da infância, meus inseparáveis companheiros de brincadeira e aventuras. Sem eles, minha vida teria tido menos graça.



Só conheci de verdade os gatos bem mais tarde, quando minha filha Débora foi estudar fora e deixou sob nossa guarda provisória a Malha, uma felina que arrebatou meu coração. Travessa, inteligente, elástica, perfeita como máquina fisiológica, a Malha conquistou rapidamente a Preta, com quem brincava de correr, e a todos os humanos, em cujos olhos fitava profundamente. Só que a Débora voltou da Itália e levou a gata embora, sem pagar resgate. Saudades.



O Bento veio para ocupar o espaço que estava vago, e foi muito bem-vindo. Só que a Preta, agora mais velha e calma, não se transformou na companheira de brincadeiras que o Bento, cuja idade não conhecemos, mas que é bem jovem, queria. “Simples” – disse a executiva da casa – “Vamos arrumar mais um gato!”. Claro, mais um gato – nada mais lógico… Esta casa está virando um zoo, mas o que é um gatinho a mais, afinal temos tanto espaço, não é mesmo?



Mal tive tempo de absorver o impacto da proposta quando já aparecia mais um filhote todo branco com o nariz preto. “Este é da raça Ragdoll, que significa boneca de trapo, em inglês. Tem esse nome porque fica todo relaxado quando é segurado no colo” – explicou a executiva de coração mole, tirando aquele serzinho assustado de dentro da caixa. “Vai se chamar Francisco” – informou. Pronto. Esta casa está virando o Vaticano felino. Espero que não aparece um João Paulo por ai, pensei, meio mal humorado.



E eis que o Francisco, além de ser dono de uma beleza impressionante, encantou a todos com sua meiguice e simpatia. E formou com o Bento uma dupla inseparável. Os dois brincam, comem, correm, brigam e dormem juntos. É comum vê-los lambendo-se mutuamente, no conhecido ritual de “banho de gato”, que os deixa sempre limpos. A simpatia de ambos trouxe ainda mais alegria para uma casa já alegre. Hoje não consigo imaginar como seria sem nossas duas cachorras e nossos dois gatos.



Homens, bichos e suas relações



A relação dos humanos com os animais é longa, e poderia ser dividida em três fases. Na primeira, bem antiga, os homens conferiam a certos animais qualidades divinas e os cultuavam como representações de deuses, assim como faziam com fenômenos naturais. Para os antigos egípcios, por exemplo, Rá, a principal divindade, era o deus-sol, e Bastet, que representava a fertilidade e o amor, tinha a forma de um gato. Quem visita o British Museum, em Londres, pode vê-la na ala egípcia, além várias múmias de gatos.



A segunda fase, que pode ser chamada de econômico-utilitarista, é marcada pela percepção da utilidade de certos animais como fonte de alimento, abrigo, proteção, transporte e, como consequência, riqueza. Esta fase ainda se faz presente, especialmente da questão alimentar, e é importante como fator econômico. O Brasil é, por exemplo, é o maior exportador mundial de carne bovina e também de aves, e precisa disso para equilibrar sua balança de pagamentos.



Ainda como parte dessa fase, encontramos o uso de animais para fins científicos. Este é, provavelmente, o ponto mais polêmico da relação homem-bicho. Teríamos nós, em nome da ciência, o direito de submeter animais indefesos a experiências com potencial de faze-los sofrer? Teríamos, por outro lado, a opção de não faze-lo, sabendo que isso pode salvar vidas humanas? Os recentes acontecimentos confirmam a importância dessa questão ética. A discussão está em aberto



Mas é sobre a terceira fase que escrevo aqui. Esta poderia ser chamada exatamente de “fase afetiva”, considerando a proximidade emocional entre os homens e os animais, incluindo as relações muito próximas com os chamados bichos de estimação, ou, simplesmente, pets (pois adoramos anglicismos). Em inglês, a palavra pet tem dois significados. Como substantivo, significa bichinho de estimação. Como verbo, to pet quer dizer acariciar, fazer carinho. Faz sentido, pois para que serve um pet senão para ser acariciado?



Ok, isso é lindo. Adoro acariciar meus bichinhos e receber lambões deles, além de abanos de rabos e latidos de alegria. Mas gostaria de questionar um pouco o verbo “servir”. Será que a melhor maneira de entender a relação de uma pessoa com seu bicho é conferir uma serventia para ele? Não seria essa uma forma de transforma-lo em um objeto de uso, e assim diminuir sua essência de ser vivo?



De fato, o homem, em sua arrogância de “ser superior”, dividiu os outros seres vivos entre os que “servem” e os que “não servem”. Mas, para que serve uma iguana, por exemplo? Ora, na verdade, ela serve para viver sua vida, para integrar um ciclo da natureza, para procriar e perpetuar sua espécie. Ela não tem a obrigação de servir ao ser humano. A serventia é uma invenção do homem, que considera, claro o que serve aos seus interesses.



Em uma visão ampliada, a serventia de um ser vivo é viver e conviver. Manter-se vivo e contribuir com a vida de outros, seja em quantidade ou em qualidade. Então, quem adota um cachorrinho, um gatinho ou outro “inho” qualquer, não está comprando um brinquedo, está iniciando uma relação de reciprocidade. Trata-se de um mutualismo. O servir tem duas mãos.



Não humanos que humanizam



Eu tenho uma visão pessoal sobre esses personagens peludos: eles são seres não humanos que, curiosamente, humanizam os ambientes. Talvez porque sua simplicidade, espontaneidade e amorosidade liberam, nos humanos, o que eles têm de melhor. As relações entre as pessoas, cheias de expectativas, cobranças e julgamentos, muitas vezes nos embrutecem e nos fazem representar papeis que não queríamos. Diante de um bichinho somos o que somos, sem máscaras. Isso é o que os bichos fazem melhor por nós, humanos. Nos deixam melhores.



Mas não podemos deixar de observar a reciprocidade, a complementariedade da relação. Gostamos de sua companhia, da alegria com que nos recebem, da fidelidade com que nos tratam, da beleza de suas presenças. E o que eles esperam de nós? Basta dar-lhes comida, abrigo e alguma atenção? Acho que não. Acho que quem adota um bichinho deve considerar que ele tem o direito de ser feliz. Só que isso dá algum trabalho, preocupação, despesa. Gente sem essa disposição, não deveria adotar um bichinho.



Sobre o Bento, temos uma desconfiança: a de que ele foi abandonado porque estava dando muito trabalho. Nossa dedicada veterinária Beth, descobriu um fato instigante no gatinho. Ele havia sido castrado, o que mostra que já tivera um dono. Só que a cirurgia havia sido mal feita, e um fio cirúrgico ficara aderido ao intestino e saia pelo ânus cada vez que o coitadinho fazia cocô na caixa de areia. Ele então saia pela casa deixando cair pelotinhas que ficavam presas ao tal fio.



Como, de manhã, a casa amanhecia cheia de marcas indesejáveis, sobre as quais era fácil pisar e fazer ainda mais sujeira, é bem provável que o antigo dono achou por bem se livrar do bichano problemático, abandonando-o em algum lugar longe de casa. Ele que se vire, quem mandou sujar a casa, veja só! É só uma suposição, mas muito provável, pois deu trabalho tratar do Bento e resolver o problema. Trabalho esse que nem todos tem disposição de ter. Afinal, é só um gato…



Não, ele não é só um gato. É a representação viva e material do que há de melhor na essência humana. A capacidade de amar, pelo simples ato de amar. E de cuidar, pela consciência de que é isto que mais nos dignifica e nos humaniza. E que venha o João Paulo…

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