quinta-feira, 17 de abril de 2014

Manifestações pacíficas no Brasil e ao redor do mundo mostram a eficácia da resistência sem agressão na hora de conquistar objetivos políticos e lutar contra a injustiça.


                                         Jeanne Callegari/ Ilustrações - Indio San

 



Ilustração - Indio San
Era 13 de junho de 2013, o dia em que a polícia militar de São Paulo feriu dezenas de pessoas, entre elas 15 jornalistas, na manifestação contra o aumento do preço da passagem de ônibus na cidade. Na Av. Ipiranga, onde eu estava, o ato seguia pacífico, com canções e palavras de ordem. De repente, vieram os primeiros estouros. Por todos os lados, bombas de gás lacrimogêneo surgiam, atiradas pela PM. Na minha frente, oito policiais da tropa de choque, protegidos por escudos e capacetes, agrediam um jovem com cassetetes. Em meio à fumaça e ao barulho, as pessoas corriam desorientadas. Até que um grupo puxou o grito, clamando para que ninguém revidasse ao ataque: "semviolência!". A cada bomba, o grito ficava mais forte. "Sem violência!" O mesmo grito se repetiu em dezenas de protestos no País.

A ideia por trás de não revidar à repressão é antiga, e atende por diversos nomes: não-violência, resistência pacífica, ação não-violenta. Para o jornalista americano Mark Kurlansky, pesquisador do tema, é uma ideia perigosa, tão perigosa que muitos dos líderes que a advogaram terminaram assassinados, como Gandhi e Martin Luther King Jr. Mas, afinal, de onde vem essa ideia, quase excêntrica, de que é possível vencer a opressão sem pegar em armas?


Resistência ativa

A não-violência é uma técnica para atingir um objetivo político sem o uso deviolência física. Por meio de métodos criativos, como boicotes, passeatas e demonstrações, os manifestantes tentam atingir o que querem. É, portanto, uma técnica de confronto. Para Kurlansky, essa é a diferença entre não-violência e pacifismo. "O pacifismo é inofensivo e mais fácil de aceitar que a não-violência, que é perigosa", escreveu em Não-Violência: a História de Uma Ideia Perigosa (Ed. Objetiva). Ele diz que a não-violência foi marginalizada por ser uma ideia revolucionária, capaz de mudar a sociedade.

Para Martin Luther King Jr, os dois conceitos se confundiam. "Meus estudos sobre Gandhi me convenceram que o verdadeiro pacifismo não é a não- resistência ao mal, mas a resistência não-violenta ao mal", escreveu o pastor em sua autobiografia. Mesmo Gandhi, o mais conhecido defensor da não- violência no século 20, dizia que era melhor resistir violentamente do que não resistir. No hinduísmo, submissão passiva à brutalidade é considerada um pecado.

A maioria das religiões fala do poder da não-violência e condena a agressão. Entre os dez mandamentos do Antigo Testamento, está o "não matarás". O Corão diz que matar outro ser humano é como ter assassinado toda a humanidade. Já budismo e hinduísmo são mais pragmáticos: dizem que a violência é o caminho errado, mas reconhecem que o ser humano é imperfeito e que poucos conseguirão seguir a via correta. Essa imperfeição talvez explique por que, mesmo com princípios elevados, muitas religiões mudam radicalmente assim que são adotadas pelo Estado. Foi o que aconteceu com o cristianismo.

Jesus era um judeu rebelde, que queria reformar o judaísmo e reforçar o conceito que considerava mais importante nele: o amor. Para ele, a saída para os conflitos era amar o inimigo. Em sua filosofia, não havia lugar para violência. "Jesus não apenas rejeitava a guerra e o assassinato, mas qualquer tipo de poder. As autoridades viam aquilo como provocação. Afinal, como pode existir autoridade sem poder?", escreve Kurlansky. Os primeiros cristãos viviam à margem da sociedade.

As coisas mudaram quando, em 312 d.C., Constantino, candidato ao trono, sonhou que venceria uma batalha se usasse a cruz como insígnia. Ele venceu e se tornou imperador. A partir daí, tirou o cristianismo da ilegalidade, financiou o clero e construiu grandes igrejas. A religião, então, se subverteu. No século 5, Santo Agostinho inventou a "guerra justa": se os motivos do combatente fossem puros, não era errado ir à guerra e matar. Em 1095, o papa Urbano II proferiu um famoso discurso em que defendia as guerras santas. Mesmo com a Igreja se afastando da filosofia original, sempre houve grupos cristãos minoritários, como os anabatistas e os quakers, que insistiam em repudiar a guerra. A maioria deles foi perseguida.


Eficácia e pragmatismo

A história da não-violência foi estudada pelo cientista político Gene Sharp que, aos 85 anos e cotado para o Nobel da Paz, é citado como referência nas manifestações recentes na Grécia, Egito, Tunísia e Turquia. Um de seus livros mais famosos, Da Ditadura à Democracia,
foi escrito em 1993 como um panfleto a pedido dos rebeldes de Burma, que queriam depor o governo autoritário daquele país.

Por mais de 20 anos, o panfleto rodou o planeta, xerocado, distribuído e traduzido clandestinamente. A ideia básica de Sharp é que, mesmo numa ditadura, o poder só existe porque há consentimento popular, e que esse consentimento pode ser retirado de forma não-violenta.

"Ao confiar em meios violentos, escolhe-se o tipo de luta na qual os opressores quase sempre têm superioridade", escreveu. Por isso, na maioria das vezes, a resposta oficial a um protesto violento é a repressão. Com a resistência pacífica, a questão se torna moral: independente da causa, a opinião pública tende a favorecer os manifestantes e a condenar o uso de força. Foi o que aconteceu no Brasil, depois que as imagens da violência policial circularam pelo País, dando legitimidade aos protestos e levando um número muito maior de pessoas às ruas. Sharp defende a resistência não-violenta porque, em geral, essa técnica causa o mínimo de perdas humanas e consegue resultados tão ou mais eficazes que o uso da agressão.

Uma das situações em que a não-violência deu certo foi na independência da Índia, liderada por Mohandas Gandhi, líder que, apesar de idealista, era extremamente pragmático. "Gandhi não era bobo. Disse coisas sobre poder e a necessidade de lutar que, se tiradas de contexto, poderiam ter sido ditas por Mao Tse-tung. Ele era osso duro de roer", disse Sharp.

Para obter a independência da Índia, o franzino indiano instou seus seguidores a boicotar os produtos ingleses. Ele dava o exemplo, ao fabricar as próprias roupas. Em 1930, para protestar contra os impostos sobre o sal, liderou os indianos em uma caminhada de 400 km até o mar. A independência veio, finalmente, em 1947. "Existem muitas causas pelas quais estou preparado para morrer, mas nenhuma pela qual esteja preparado para matar", disse Gandhi.

É possível questionar: será que a não-violência teria funcionado contra um inimigo sem escrúpulos - como os nazistas, por exemplo? Sharp e Kurlansky acreditam que sim, e lembram que a não-violência salvou muitos judeus durante a II Guerra. Um dos casos ocorreu na Dinamarca, país que tentava se manter fora do conflito. Os alemães, porém, os forçaram a capitular, prometendo que, se não resistissem, poderiam conservar sua independência. Os dinamarqueses concordaram. Os habitantes, porém, passaram a sabotar e atrasar os transportes e destruir equipamentos. Quando os alemães anunciaram que queriam deportar os judeus, os dinamarqueses esconderam seus 6500 judeus e os levaram de barco até a Suécia. Ao final, apenas 400 judeus foram deportados; o governo dinamarquês continuou perguntando por eles, de forma tão insistente que, ao final, nenhum foi enviado aos campos de concentração. Na Hungria, cerca de 100 mil judeus foram salvos por um embaixador sueco, que emitia passaportes de seu país em nome deles.

Outro emblemático uso da não-violência foi na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. No dia 1o de dezembro de 1955, Rosa Parks se recusou a se levantar de seu lugar no ônibus para dar lugar a um passageiro branco, na cidade de Montgomery, no Alabama. Na época, os ônibus de alguns Estados americanos eram segregados. Além disso, se os espaços dedicados aos brancos lotassem, os negros deveriam se levantar e dar seu lugar a eles. Rosa Parks se recusou e foi presa. Seu ato inspirou um boicote aos ônibus da cidade. Com a liderança de Martin Luther King Jr, a população negra de Montgomery começou a evitar os ônibus. Os taxistas negros toparam pegar passageiros de graça e um sistema de caronas foi organizado.

A repressão veio na sequência. A polícia inventava violações imaginárias às leis de trânsito para perseguir os motoristas das caronas. Negros foram presos em massa, inclusive Luther King. Até que, depois de 12 meses de incansável boicote, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou a segregação nos ônibus inconstitucional. A vitória uniu a comunidade negra e representou uma virada na luta pelos direitos civis. "O negro [...] adquiriu uma nova percepção de respeito próprio, e está determinado a conquistar liberdade e dignidade, não importa o preço", escreveu King. A partir daí, a luta se expandiu. Boicotes e marchas começaram a pipocar. Apesar de nem todos os ativistas negros serem partidários da não-violência, o movimento dos direitos civis permanece como uma prova da eficácia do método.

Nem sempre o ganho da não-violência é o esperado. É o caso dos maoris, povo de origem polinésia da Nova Zelândia. No século 19, eles estavam sendo expulsos de suas terras pelos colonizadores britânicos. Mesmo valentes na arte da guerra, estavam sendo massacrados. Foi quando Te Whiti, um líder de ombros largos e traços fortes, surgiu, e convidou os maoris encurralados a ir para Parihaka, a vila onde morava. Eles poderiam permanecer desde que destruíssem suas armas. A intenção de Te Whiti era negociar um tratado com os brancos.

Por dez anos, os maoris continuaram vindo. Ao chegar, traziam consigo arados. Muitos. Os brancos não entendiam para que tantos arados. Até que, em 26 de maio de 1879, os europeus olharam pelas janelas e viram: maoris estavam arando as terras que haviam sido confiscadas pel0s brancos. Os europeus reclamaram, mas os maoris continuaram arando, do amanhecer ao anoitecer, todos os dias. Muitos foram presos, mas a campanha continuava. Em 1880, o governo já tinha gasto mais de 1 milhão de libras para acabar com as manifestações, sem sucesso. Certa feita, um exército de 2500 atacou Parihaka, e foram recebidos por jovens garotas cantando.

Os maoris não reconquistaram sua terra. Te Whiti foi preso, Parihaka foi destruída. Mas hoje, eles são meio milhão de pessoas, 20% dos habitantes da Nova Zelândia. Te Whiti e seus seguidores levam o crédito por ter evitado o genocídio de sua gente. Se tivessem continuado a guerrear, teriam, provavelmente, sido exterminados.

Uma das coisas curiosas sobre a não-violência é que, na maioria das línguas, não existe um termo ativo para ela: o conceito existe sempre em oposição ao conceito principal, o de violência. Ahimsa, em sânscrito, é uma palavra composta por "himsa", causar dano, e pelo prefixo "a", não. Parece detalhe, mas e se a língua for um termômetro das nossas prioridades enquanto sociedade? "Se vivêssemos num mundo em que não houvesse termo para guerra exceto não-paz, que tipo de mundo ele seria? Não seria necessariamente um mundo sem guerra, mas um em que a guerra fosse vista como algo aberrante e insignificante", escreve Kurlansky.

"No fim das contas, a não violência é um modo de vida", disse Luther King. É uma escolha que podemos fazer todos os dias, independente de termos, ou não, ditaduras a derrubar. Sem conformismo, podemos achar formas criativas de lidar com os conflitos. Afinal, como disse Gandhi, olho por olho, e o mundo acabará cego.


Indio San é Everson Nazari, designer e ilustrador, e assina, todo mês, as ilustrações da página "Gente Íncrivel".

Jeanne Callegari
é editora-assistente de Vida Simples e acredita na não-violência como técnica de confronto.

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