quinta-feira, 17 de abril de 2014

" A Lei Primordial e a abolição do Filicídio "

Artigo| Zero Hora

O mito de Abraão,
sobrevivente de
um filicídio, é a
lembrança simbólica
dos inúmeros
genocídios infantis
FRANKLIN CUNHA*
 
 
A questão das origens da sociedade humana leva a algumas reflexões: em que consiste a diferença animalidade/humanidade e como essa diferença se produziu? Freud, Malinowski, Robin Fox, Lévi Strauss, Marcuse, Castoriadis, entre outros, abordaram esse tema. Em linhas gerais, concluíram que a separação entre o animal e o homem, ou seja, o fim da barbárie e o início da civilização, se inaugurou com o estabelecimento de uma lei primordial: a interdição do incesto, do canibalismo, do assassinato entre os membros do clã e do filicídio.

 


 
 


O ciúme e o ódio gerados na disputa pelas fêmeas num regime de promiscuidade sexual, somados à violência fratricida e antropofágica na luta por alimentos, ameaçavam extinguir nossos primevos irmãos. Eles então estabeleceram regras de convivência graças às quais tornaram possível a continuidade da espécie.
A existência dessas proibições entre os humanos, sua ausência entre os animais, foi a principal questão discutida por Freud em Totem e Tabu. As explicações variam não só entre os psicanalistas como entre antropólogos, historiadores, sociólogos e etólogos. A rigor, poder-se-ia dar uma resposta neodarwiniana à pergunta acerca das origens do assassinato intraclânico e de sua interdição: entre os grupos de proto-hominídeos, somente sobreviveram aqueles que acordaram em proibir o homicídio e o filicídio como prática corrente. Os outros, com o tempo, eliminaram-se, “exterminaram o seu futuro”. Provavelmente , os primeiros foram os neandertal. E os últimos, os cro-magnon.
Freud também discute a questão da origem das instituições. Segundo ele, sempre existirão pessoas lúcidas tentando proibir, através de códigos laicos ou religiosos, as pulsões homicidas que ameaçam a civilização. A interdição do homicídio como prática corriqueira de vida marcou o limite entre a barbárie e a cultura. Nessa vertente de pensamento, se encaixa o psicanalista Arnaldo Raskovsky com sua teoria sobre a universalidade dos sentimentos filicidas.
Essa herança vem da noite pré-histórica. O mito de Abraão, sobrevivente de um filicídio e, por sua vez pai filicida, é a lembrança simbólica dos inúmeros genocídios infantis que mancharam a trajetória humana. Tais recordações se repetem através dos tempos em personagens como Herodes ou como o faraó egípcio que perseguiu o primogênito do povo judeu e originou a história de Moisés. O próprio mito edipiano, interpretado por Freud como um parricídio, teve origem numa prévia atitude filicida. Laio mandou matar seu filho Édipo e depois foi por este assassinado.
Sempre que os poderosos se sentem ameaçados, sua resposta vem com violência quase sempre infanticida, como nas guerras. Lembremos dos versos da mais entusiástica canção guerreira do ocidente cristão: “Allons enfants de la patrie”. “Le jour de gloire”, quando chegou, veio através da morte de milhares de infantes. Embora a pátria fosse salva, eles certamente não queriam morrer. E, como se sabe, na paz os jovens enterram os velhos, mas, nas guerras, sempre desencadeadas por gerontocratas, estes enterram os jovens.
Lembremos que, ao serem criadas as primeiras universidades, o sufocante espírito medieval recebeu uma fresca aragem de vital criatividade. A opressão, a intolerância, o desprezo pela vida humana começaram a ser eliminados das relações interpessoais. Hoje, a religião tecnológica, com seus deuses da eficiência, da produtividade e do consumo maníaco entronizados nos altares das salas de aula, rotulou como inutilidade arqueológica toda aquela herança cultural renascentista que não tem mais qualquer significado para a maioria dos corpos docente e discente. A universidade, pois, se converteu num lugar de especialistas, docilmente integrados ao sistema vigente e abstinentes de uma visão crítica e contundente dos dramas e tragédias sociais.
Os jovens devem ser estimulados a respeitar as leis e a discuti-las sob um crivo discriminatório, a fim de avaliar suas equidade, abrangência e mesmo exigir sua consensual revogação. Porém, a lei primordial, aquela que separou a barbárie da civilização não pode ser abolida por fortuitos eventos históricos, sociais e econômicos. E psicopatológicos.

*Médico

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