Diana Lichtenstein*
Dizem que o filho de Deus teria resolvido voltar à Terra para sentir de perto a realidade de seu rebanho. Em busca de uma identidade secreta, a de médico do SUS pareceu-lhe conveniente, pois curar já era um de seus atributos. Num posto, recebeu um paralítico a quem ordenou levanta-te e anda, e o paciente saiu do atendimento livre da cadeira de rodas. O pessoal na sala de espera indagou-o sobre o que achara do novo doutor. Ele respondeu que era como os outros: Imagina, nem me examinou, só olhou e já me mandou embora.
Essa piada ilustra o papel de deuses que atribuímos aos médicos, assim como da eterna insatisfação dos pacientes. Afinal, entre nós e a morte sempre há um deles. Ao fardo de situarem-se no limite da existência, os profissionais têm reagido de diversas formas, muitos com seriedade e humildade, outros com soberba.
Só que há algo que está acima da condição individual, que diz respeito ao papel social superdimensionado da categoria. Depositamos neles uma expectativa quase delirante: imaginar a imensidão do seu poder convém, nos protege do medo da doença e da morte. Veneramos seu saber e os desprezamos e odiamos quando nos sentimos por eles desamparados. Infelizmente, alguns médicos e pacientes esquecem-se de que trata-se apenas de trabalhadores da saúde, fundamentais, mas de forma alguma divinos.
Entregamos enorme poder imaginário aos médicos pelo tanto que deles dependemos, mas principalmente pelas fantasias que temos a seu respeito. Eles fazem o que podem, usam sua ciência e competência a nosso favor, mas são gente como nós. Quantas vezes os odiamos justamente porque os endeusamos?
O médico que deixou seu filho Bernardo Boldrini em estado de indigência emocional, a ponto de ser assassinado pela madrasta, deixa-nos estarrecidos. Certamente porque espera-se de um pai o oposto do que ele fez. Porém, o constrangimento em torno deste caso provém de que o menino pediu ajuda à Justiça, mas a casa de um doutor provavelmente parecia um lugar improvável para tanto mal.
Daqueles de quem esperamos, apenas, que nos livrem da morte, não seria perdoável que fossem perversos, omissos, corruptos. Foi o caso do nazista Josef Mengele, cuja monstruosidade se multiplica aos nossos olhos quando associada à sua profissão. Na fantasia, coube ao Dr. Frankenstein, imbuído do desejo da divindade, conceber a criatura horripilante feita de cadáveres. Na mesma linhagem fantástica, Dr. Jekyll, também um médico, teve que ser o alter ego destinado a encobrir a sanha assassina de Mr. Hyde, o monstro.
Dos médicos, tão sobrecarregados pelo nosso imaginário de doentes apavorados, espera-se que tenham preparo para lidar com essa massa de sentimentos e expectativas. Por sorte, apesar dos que se iludem e acreditam na própria divindade, há muitíssimos outros, tão humanos como você e eu. Quanto a nós, pacientes, precisamos ter a coragem de livrar os doutores da onipotência que atribuímos a seu ofício.
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*PsicanalistaEssa piada ilustra o papel de deuses que atribuímos aos médicos, assim como da eterna insatisfação dos pacientes. Afinal, entre nós e a morte sempre há um deles. Ao fardo de situarem-se no limite da existência, os profissionais têm reagido de diversas formas, muitos com seriedade e humildade, outros com soberba.
Só que há algo que está acima da condição individual, que diz respeito ao papel social superdimensionado da categoria. Depositamos neles uma expectativa quase delirante: imaginar a imensidão do seu poder convém, nos protege do medo da doença e da morte. Veneramos seu saber e os desprezamos e odiamos quando nos sentimos por eles desamparados. Infelizmente, alguns médicos e pacientes esquecem-se de que trata-se apenas de trabalhadores da saúde, fundamentais, mas de forma alguma divinos.
Entregamos enorme poder imaginário aos médicos pelo tanto que deles dependemos, mas principalmente pelas fantasias que temos a seu respeito. Eles fazem o que podem, usam sua ciência e competência a nosso favor, mas são gente como nós. Quantas vezes os odiamos justamente porque os endeusamos?
O médico que deixou seu filho Bernardo Boldrini em estado de indigência emocional, a ponto de ser assassinado pela madrasta, deixa-nos estarrecidos. Certamente porque espera-se de um pai o oposto do que ele fez. Porém, o constrangimento em torno deste caso provém de que o menino pediu ajuda à Justiça, mas a casa de um doutor provavelmente parecia um lugar improvável para tanto mal.
Daqueles de quem esperamos, apenas, que nos livrem da morte, não seria perdoável que fossem perversos, omissos, corruptos. Foi o caso do nazista Josef Mengele, cuja monstruosidade se multiplica aos nossos olhos quando associada à sua profissão. Na fantasia, coube ao Dr. Frankenstein, imbuído do desejo da divindade, conceber a criatura horripilante feita de cadáveres. Na mesma linhagem fantástica, Dr. Jekyll, também um médico, teve que ser o alter ego destinado a encobrir a sanha assassina de Mr. Hyde, o monstro.
Dos médicos, tão sobrecarregados pelo nosso imaginário de doentes apavorados, espera-se que tenham preparo para lidar com essa massa de sentimentos e expectativas. Por sorte, apesar dos que se iludem e acreditam na própria divindade, há muitíssimos outros, tão humanos como você e eu. Quanto a nós, pacientes, precisamos ter a coragem de livrar os doutores da onipotência que atribuímos a seu ofício.
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fonte; ZH ONLINE, 26/04/2014Imagem da Internet: Menino Bernardo assassinado pela madrasta e abandonado pelo pai.
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