Orlando Faccini Neto*
Recentes estudos sobre nosso funcionamento cerebral sepultaram o ponto de vista de que razão e emoção afiguravam-se divergentes, de maneira que o desenvolvimento de nossa racionalidade não envolvia a participação de estados afetivos. Hoje, diz-se que razão e emoção caminham juntas, e não se descarta alguma inteligência emocional, para que nas empreitadas da vida logremos algum sucesso.
Paradoxal que seja, todavia, entre os estados afetivos reside justamente a possibilidade de sua ausência. É que, se muitos nos movemos por compaixão, por ciúme, por medo ou alegria, há aqueles cuja vida moral se notabiliza pela indiferença.
Não em todos os seus propósitos, mas para certos âmbitos de relação, alguns indivíduos agem em completa desconsideração para o que lhes seja alheio, e dando de ombros perseguem, no reino da individualidade, suas metas e seus objetivos. Não possuem disposição para mergulhar nas dificuldades dos outros, mesmo que agudas, o que não esconde um sintoma de isolamento, em que o sujeito se aparta dos demais, ocultando-os diante da proeminência de si mesmo.
Frisemos, porque essa é nossa primeira conclusão: seja o indiferente, seja aquele que age movido pela exaltação de algum estado afetivo, justamente porque as emoções e a racionalidade são indistintas, não podem alegar para si o que em Direito Penal chamamos de inimputabilidade. Com efeito, sabem o que fazem e variados estudiosos do tema cogitam até mesmo de uma contemporânea educação emocional, em que os incomodados procuram alterar a base de seus afetos.
Isto dito, é necessário apontar que certos casos, situados embora neste plano emocional, são convertidos em normas. O Direito Penal não lhes é, passe o trocadilho, indiferente. Matar por repulsa racial, ou por um ciúme possessivo, agrava a pena do homicida.
Certas obrigações emanam da legislação penal, entre as quais se situa o dever de cuidado. O artigo 13, parágrafo 2º do Código Penal dispõe que o resultado de um crime é imputável àquele que, omitindo-se, tinha entretanto o dever de evitá-lo. Esse dever, autêntico dever de proteção, decorre da lei para os casos que envolvem a relação entre pais e filhos. A indiferença, neste caso, é legalmente repelida.
O genitor, portanto, que nada faz diante de uma situação de risco incidente sobre seu filho, excluída a hipótese em que ele próprio viesse a correr algum risco, é abrangido normativamente pelo resultado delituoso. Sequer a combinação ou o acordo de vontades com o executor do ato se há de exigir: um pai que, ciente da presença de um maníaco nos arredores de sua casa, deixa-a aberta, na esperança de que o facínora elimine a sua prole, não estará excluído de responder pelos homicídios realizados.
As informações até agora havidas sobre o caso de Três Passos conduzem a esse tipo de reflexão. Que se não alegue, no desvio moral da indiferença, uma qualquer inimputabilidade. Mesmo a maldade não nos faz “loucos”, pois de certo modo somos capazes do mal, se bem que a maldade ou ódio ainda signifiquem uma projeção afetiva que considera o outro como pessoa, sendo certo que a indiferença é a pura e simples desconsideração. E que se não relegue apenas aos executores uma responsabilidade que mais não é do que uma decorrência da violação do inerente dever de cuidado, emanado da condição paterna.
Ao saber da morte de sua mãe, Mersault, personagem d’O Estrangeiro, de Camus, sentiu nada, e assim demonstrou inequivocamente a sua indiferença. Mas ainda chamou-a de mãe.
*Juiz de Direito, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Lisboa, professor
Recentes estudos sobre nosso funcionamento cerebral sepultaram o ponto de vista de que razão e emoção afiguravam-se divergentes, de maneira que o desenvolvimento de nossa racionalidade não envolvia a participação de estados afetivos. Hoje, diz-se que razão e emoção caminham juntas, e não se descarta alguma inteligência emocional, para que nas empreitadas da vida logremos algum sucesso.
Paradoxal que seja, todavia, entre os estados afetivos reside justamente a possibilidade de sua ausência. É que, se muitos nos movemos por compaixão, por ciúme, por medo ou alegria, há aqueles cuja vida moral se notabiliza pela indiferença.
Não em todos os seus propósitos, mas para certos âmbitos de relação, alguns indivíduos agem em completa desconsideração para o que lhes seja alheio, e dando de ombros perseguem, no reino da individualidade, suas metas e seus objetivos. Não possuem disposição para mergulhar nas dificuldades dos outros, mesmo que agudas, o que não esconde um sintoma de isolamento, em que o sujeito se aparta dos demais, ocultando-os diante da proeminência de si mesmo.
Frisemos, porque essa é nossa primeira conclusão: seja o indiferente, seja aquele que age movido pela exaltação de algum estado afetivo, justamente porque as emoções e a racionalidade são indistintas, não podem alegar para si o que em Direito Penal chamamos de inimputabilidade. Com efeito, sabem o que fazem e variados estudiosos do tema cogitam até mesmo de uma contemporânea educação emocional, em que os incomodados procuram alterar a base de seus afetos.
Isto dito, é necessário apontar que certos casos, situados embora neste plano emocional, são convertidos em normas. O Direito Penal não lhes é, passe o trocadilho, indiferente. Matar por repulsa racial, ou por um ciúme possessivo, agrava a pena do homicida.
Certas obrigações emanam da legislação penal, entre as quais se situa o dever de cuidado. O artigo 13, parágrafo 2º do Código Penal dispõe que o resultado de um crime é imputável àquele que, omitindo-se, tinha entretanto o dever de evitá-lo. Esse dever, autêntico dever de proteção, decorre da lei para os casos que envolvem a relação entre pais e filhos. A indiferença, neste caso, é legalmente repelida.
O genitor, portanto, que nada faz diante de uma situação de risco incidente sobre seu filho, excluída a hipótese em que ele próprio viesse a correr algum risco, é abrangido normativamente pelo resultado delituoso. Sequer a combinação ou o acordo de vontades com o executor do ato se há de exigir: um pai que, ciente da presença de um maníaco nos arredores de sua casa, deixa-a aberta, na esperança de que o facínora elimine a sua prole, não estará excluído de responder pelos homicídios realizados.
As informações até agora havidas sobre o caso de Três Passos conduzem a esse tipo de reflexão. Que se não alegue, no desvio moral da indiferença, uma qualquer inimputabilidade. Mesmo a maldade não nos faz “loucos”, pois de certo modo somos capazes do mal, se bem que a maldade ou ódio ainda signifiquem uma projeção afetiva que considera o outro como pessoa, sendo certo que a indiferença é a pura e simples desconsideração. E que se não relegue apenas aos executores uma responsabilidade que mais não é do que uma decorrência da violação do inerente dever de cuidado, emanado da condição paterna.
Ao saber da morte de sua mãe, Mersault, personagem d’O Estrangeiro, de Camus, sentiu nada, e assim demonstrou inequivocamente a sua indiferença. Mas ainda chamou-a de mãe.
*Juiz de Direito, doutorando em Direito Penal pela Universidade de Lisboa, professor
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