Por muitos anos, minha mãe morou num prédio que ficava ao lado de uma clínica dermatológica. O médico responsável morava com a família no andar de cima da clínica. Uma tranquilidade: no caso de um imprevisto, era só bater na porta desse vizinho providencial e o atendimento seria imediato e eficaz. Minha mãe nunca precisou, mas certa vez levou lá minha filha, ainda pequena, durante uma ocasião em que eu estava viajando. E o atendimento foi realmente imediato e eficaz. Um luxo.
Passado um tempo, a esposa e o filhinho do médico evaporaram. A clientela diminuiu. Até que a clínica fechou de vez. O médico passou a ser visto raramente. Barba por fazer, roupas desleixadas. Minha mãe e eu chegamos a comentar sobre a esquisitice da situação, mas não imaginamos que fosse algo grave, até que um dia nos deparamos com a foto dele estampada na página policial do jornal, sendo acusado do assassinato da mulher e do filho. Durante algumas semanas, muitas reportagens foram feitas, mas os corpos nunca foram encontrados e o aparente crime ficou sem solução. A casa foi vendida, o cara sumiu, o mistério venceu.
Lembrei desse episódio quando soube da tragédia de Três Passos. Todo crime é chocante, mas ficamos ainda mais chocados quando os prováveis assassinos são os chamados cidadãos acima de qualquer suspeita – como se dinheiro, beleza e classe social imunizassem contra a violência e a patologia. Não imunizam nem evitam nada, apenas nos colocam todos na mesma calçada. Talvez estejamos cumprimentando todo dia alguém que mataria uma criança, confiantes de que a vizinhança é gentil e que é uma sorte não vivermos entre marginais.
De forma objetiva, Bernardo foi vítima da ganância da madrasta e da amiga desta, mas necessitamos de uma explicação mais profunda e para isso recorremos ao nosso vasto cardápio de acusações. Há quem responsabilize o ateísmo, a televisão, os games, os filmes de ação, a liberalidade dos costumes, a decadência do império, a revolução feminista, a corrupção, os distúrbios psíquicos, o consumismo, a internet, o narcotráfico, o individualismo etc., etc., etc., até compor uma lista apocalíptica de fatores que justifique o saudosismo: “A vida já foi mais valorizada”.
Foi mesmo? Conforta pensar que somos vítimas de uma era, mas o fato é que a vida sempre foi trágica. Nosso susto é apenas proporcional à proximidade com que a tragédia se manifesta. Lá nos cafundós do judas, onde crianças também morrem pelas mãos de parentes, tudo parece mais fácil de deglutir: elas não se parecem com nossos filhos e nós não parecemos com seus pais. Mas, quando acontece na casa ao lado, aí a gente se embaralha e só nos resta entregar os pontos e reconhecer que não há explicação que console. Simplesmente o mundo é e sempre foi um hospício.
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