sexta-feira, 17 de outubro de 2014

" Que amor de si mesmo se dá ao próximo se somos nossos piores inimigos ???? "

Que amor de si mesmo se dá ao próximo se somos nossos piores inimigos?
 Ana Maria Lima*

Marcelo Tas e seu filho: Enquanto uns assumem publicamente seus desejos,
 outros assumem seus preconceitos

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As conquistas da sociedade contemporânea ocidental pós 68 deu às pessoas maior liberdade para assumirem as suas diferenças nas preferências sexuais e estilos de vida. Mas esse mesmo mundo mais diversificado não se tornou menos segregador, o que houve de errado?

A era pós 68 respirava liberdade, havia o otimismo da queda do pai castrador e o advento de uma sociedade de irmãos, relembra o psicanalista Eric Laurent, “acompanhados do hedonismo feliz de uma nova religião do corpo”, mas Lacan já estragava um pouco a festa, prevendo uma consequência paradoxal - Não sabemos o que é o gozo, a partir do qual podemos nos orientar, só sabemos rejeitar o gozo do Outro. Sabedores da precariedade do nosso gozo, nos metemos a querer solucionar o gozo do Outro, pois consideramos deslocado, fazemos isso para “o bem dele”. Deixar o Outro entregue ao seu modo de gozo, implica em não tentarmos lhe impor o nosso, não o tomarmos como subdesenvolvido, diz Lacan, que década de 70 também já alertava para o aumento dos fundamentalismos religiosos que presenciamos hoje, resultado da soma deste "querer solucionar o Outro" com o anseio de um Pai unificador e poderoso. Para ele em uma comunidade sempre jaz a rejeição de um gozo inassimilável, embrião para uma barbárie possível. 

Jacques Alain Miller e Eric Laurent citam o personagem de Robert Musil “O Jovem Torless” para ilustrar o consentimento de violência na formação de grupo. Torless era o liderzinho de uma trupe de três estudantes em um internato de meninos. Eles torturavam um menino que se diferenciava dos demais por vários aspectos, dentre eles o fato de ser pobre e cometer furtos. O internato era conhecido por formar a elite pensante da nação. Estavam os três, identificados e ligados a um ideal do Eu potente, que os permitia torturar o outro menino pois não o reconheciam como um igual.

“O ódio comum pode unificar a multidão, ligada a uma identificação segregada ao líder” 
Eric Laurent

Para entender rapidamente como se dá a formação de um grupo totalitário vale assistir o filme “A onda”, baseado em fatos reais. Um professor ensina na prática como criar uma autocracia. Com a queda do nome do pai e ausência de valores sólidos, podemos perceber a facilidade com que os jovens se entregam a formação de grupos que lhes dê um ideal de Eu, segurança, afeto e sensação de poder. E basta ler a teoria da “Psicologia das massas e análise do ego” de Freud, para entender o que se passa com o comportamento de grupo, e porque muitos deles acabam praticando algum tipo de violência. A ciência e as invenções tecnológicas modificaram os agrupamentos sociais introduzindo neles a universalização/globalização. Para Lacan o que se formam são coletividades particulares se colocando diferentes de umas das outras, seguindo o mesmo modelo, porém com significastes diferentes, os significantes-amo ou significantes-mestres como propõe Miller. Não mais o pai, mas os significantes-mestre fazem os laços sociais. O filósofo Zigmunt Bauman afirma que a busca frenética por identidade avança conforme a globalização; ele é o efeito colateral e o subproduto da combinação das pressões globalizantes e individualizadoras e das tensões que elas geram. “As guerras de identificação não são nem contrárias nem estão no caminho da tendência globalizante: são crias legítimas e companhias naturais da globalização, e, longe de deter sua marcha, lubrificam suas rodas”.

Testemunhamos a mais pura caricatura da expressão homofóbica nas falas do candidato a presidência Levy Fidelis, e um dia depois entra em pauta em diversas mídias a história do filho transexual do apresentador Marcelo Tas. O cartunista Laerte também é ícone dos novos tempos, heterossexual resolveu se vestir como mulher. A sociedade atual permite que as pessoas assumam suas escolhas, mas isso não significa que haja menos preconceito ou segregação. Presenciamos grupos assumindo suas diferenças e reivindicando seus direitos, e ao mesmo tempo, incoerentemente, expressando duras formas de preconceito contra outros grupos. Vemos agrupamentos políticos levantando bandeiras de justiça social mas com estruturas completamente autoritárias, ações violentas e antidemocráticas.

O laço social inclui a segregação; Lacan afirma que o sujeito se ressente de sua falta de gozo e supõe um responsável. É para este responsável que a segregação e o ódio se dirigem. A "era da identidade" está cheia de som e fúria, para Bauman, a busca pela identidade divide e separa; porém, a precariedade da solitária construção da identidade do ser, em seu desamparo, faz com que os construtores de identidade busquem um bode expiatório para pendurar nele seus medos e ansiedades vividos individualmente e executar os ritos de exorcismo na companhia de outros indivíduos, similarmente temerosos e ansiosos. Se essas "comunidades de expiação" de fato fornecem o que se espera que ofereçam é uma questão discutível; mas montar uma barricada em companhia de outros fornece um alívio momentâneo para a solidão. De acordo com o filósofo, as fronteitas longe de se extinguir parecem ser erigidas em todas as esquinas de todos os bairros em decadência de nosso mundo. 

“Os racismos, fundamentalismos e grupos étnicos se apresentam como um sintoma desesperado de pessoas que procuram uma regra do jogo, porque não há mais” 
Baudrillard

Sem amor, sem dor 

O filme futurístico “O doador de memórias” apresenta uma sociedade igualitária, esterilizada, homogeneizada, a salvo de guerras, doenças e desavenças. O preço a pagar é a dissolução de suas individualidades - todos vestem roupas semelhantes, de cor branca, as residências e hábitos são semelhantes. Não há classes sociais, guetos ou grupos, a educação e disciplina são extremamente rígidas, e as pessoas são valorizadas por seus méritos na construção e manutenção desta sociedade. Há um controle rígido sobre a linguagem, muitas palavras foram eliminadas por representar coisas ruins para o formato de sociedade que desenvolveram, e quando não há palavras, não há significação, sentido, transmissão. Palavras como: guerra, dor, sofrimento, conflito; mas também: amor, dança, sentimentos e paixão. As pessoas não se beijam e não se tocam fora das residências – os bebês são todos gerados em laboratório, para que sejam perfeitos, e as pessoas tomam uma dose diária de medicamento para evitar oscilações emocionais.

Rígida disciplina, cerceamento da linguagem e psicotrópicos - a sociedade perfeita protege o homem 
de sua humanidade 

O trama gira em torno do guardião de memórias, um senhor que vive no isolamento com uma biblioteca enorme, e é o único que detém as lembranças de como o mundo era antes desta sociedade. Ele precisa deixar um sucessor e a aventura começa no treinamento do jovem guardador de memórias.

Diálogo do filme

- Pai, você me ama?

- Filho eu não sei o que significa amar, mas eu tenho grande admiração e respeito por você e suas conquistas, se isto for amor então eu te amo.

Há uma cena onde está reunido o comitê gestor desta sociedade discutindo sobre o amor - se a sociedade deve continuar sem ele, ou se era melhor antes. Uns argumentam -mas... muito mal se fez em nome do amor – e por aí seguem os diálogos. 

Certeza das incertezas

De um lado a natureza da formação de grupos, da busca de identidades, de como reside em nós algo da rejeição ao outro e de que provavelmente vamos nos unir mais pelo que rejeitamos em comum do que pelo que apreciamos. De outro uma sociedade sem diferenças nem conflitos, porém altamente disciplinada e vigiada. Termino este texto com muitas dúvidas e nenhuma certeza e me permito tomar as perguntas de Jacques Alain Miller;

“A liberdade dos modernos é o individualismo, é considerar que a sociedade não deve ter fins coletivos, e os gozos são privados, onde ela não intervém; a liberdade dos antigos acentua a comunidade e os fins coletivos. Esta legitimação da comunidade pode implicar certos meios de coação sobre os indivíduos. O que é o absoluto? O indivíduo moderno, seus direitos, sua liberdade de expressão? Ou este absoluto pode ser forçado por uma sociedade que afirma fins coletivos fortes, com o totalitarismo tanto antigo como moderno no horizonte?”

BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas - Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. In: Obras completas de Sigmund Freud; trad. Dr. I. Izecksohn. Rio de Janeiro: Delta, s.d. p. 7-105. v.9.

LAURENT, Eric. Racismo 2.0 http://www.revconsecuencias.com.ar/ediciones/012/template.asp?arts/Alcances/El-racismo-2-0.html#notas

MILLER, J.-A y otros, El Otro que no existe y sus comités de ética, Paidós, Buenos Aires, 2005
LACAN, Jacques. Televisão. IN:Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2003


  1. * Jornalista, fotógrafa, pós-graduada em comunicação e atualmente estudante de psicanálise.
  2. Fonte: © obvious:

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