João Pereira Coutinho*
Não existe autor que não tenha apresentado como seus os
conceitos que nasceram de outras penas
Em 1916, um obscuro autor alemão, Heinz
von Lichberg, escreveu um conto. O "Times Literary Supplement", anos atrás,
publicou esse conto. História simples: um jovem estudante aluga um quarto de
hotel e apaixona-se pela filha pré-púbere dos donos. O final é lúgubre para a
"ninfeta" em questão. Nome do conto? "Lolita."
Quando li essa revelação, caí do céu. "Lolita",
o romance de Vladimir Nabokov publicado em 1955, é um dos meus livros da vida.
Mas agora existia uma sombra de ilegitimidade a pairar sobre a obra: teria
Nabokov roubado a história a Heinz von Lichberg?
Nas semanas seguintes, a polêmica instalou-se
nas páginas do "TLS". Conclusão possível: sim.
Nabokov provavelmente lera o conto durante a
sua passagem pela Alemanha. Mas era impossível estabelecer com certeza se o
roubo foi consciente ou inconsciente.
E não seria de excluir que, décadas depois de o
ler, Nabokov tenha iniciado a sua "Lolita" como se a ideia fosse sua e apenas
sua.
Eis a tese do neurocientista Oliver Sacks em
ensaio magistral para o "The New York Review of Books". Sacks não se ocupa de
Nabokov, claro, embora o título do seu texto seja, ironicamente, um evocação do
escritor ("Speak, Memory"). Sacks está interessado em analisar o fenômeno da
"criptomnésia", que por vezes se confunde com o rasteiro "plágio".
Um erro, avisa Sacks. "Plagiar" é roubar de
forma intencional e consciente o trabalho intelectual de terceiros. Mas
"criptomnésia" é outra coisa: esquecermos as fontes do que lemos, deixando que a
memória construa a sua própria "originalidade" sobre elas.
Isso é recorrente no trabalho intelectual e não
existe autor -de Shakespeare a Coleridge, de Milton a T.S. Eliot- que não tenha
apresentado como seus os conceitos, as ideias e até as frases que nasceram de
outras penas esquecidas.
Mas a "criptomnésia" não precisa do trabalho
literário para tiranizar a nossa memória. O próprio Sacks relata uma experiência
da sua juventude na Inglaterra, durante a Segunda Guerra, que nunca foi uma
experiência real. Sim, ele julgava ter escapado a dois bombardeamentos nazistas.
Até escreveu sobre eles com impressionante vivacidade.
Mas foi preciso o testemunho de um irmão mais
velho para que a "verdadeira verdade" substituísse a "subjetiva verdade": ele,
Oliver, experienciou o primeiro bombardeamento, não o segundo. Do segundo, lera
apenas a respeito -e o impacto dessa leitura fez com que a memória diluísse a
fronteira entre a "verdade histórica" e a "verdade narrativa". Ou, melhor
dizendo, a "verdade narrativa" transformou-se em "verdade histórica".
A nossa memória é ambígua porque toma como
verdade o que por vezes não foi verdade. Incorpora experiências, ou ideias, ou
conceitos que não são radicalmente nossos. Mas que se oferecem como nossos
quando as pegadas da originalidade já desapareceram do nosso areal
interior.
Será isso uma fraqueza, que no limite impede
qualquer criação ou recordação "autênticas"?
Longe disso, escreve Oliver Sacks: a
"criptomnésia" é fundamental para qualquer atividade criativa. Se o nosso
cérebro fosse um arquivo rigoroso, catalogando cada experiência ou referência
com precisão mecânica, nós seríamos incapazes de funcionar ou criar. Não pela
consciência insuportável de que nada é nosso.
Mas pelo motivo mais básico de que todas as
informações, mesmo as mais desprezíveis, ocupariam todo o "espaço" mental.
Paradoxalmente, criamos porque esquecemos. E
esquecemos, de forma ainda mais paradoxal, o que a nossa memória registrou como
significativo para nós: um reservatório de conhecimentos ou encantamentos onde
iremos voltar um dia -anos depois, décadas depois- para construir as nossas
"originalidades".
Por mim falo: escrevo porque leio. E esqueço o
muito que li. Mas sei que nesse esquecimento a minha memória não dorme. Ela será
sempre um ladrão silencioso e noturno, jogando para dentro da sacola uma ideia
aqui, uma imagem acolá, uma provocação mais além.
Sem falar das minhas experiências de vida -as
experiências vividas, as experiências escutadas, as experiências inventadas- e
que já fazem parte do meu DNA.
Serei uma fraude, como o velho Vladimir e a sua
"ninfeta"?
Melhor, leitor, muito melhor: como todos nós,
sou uma fraude que se julga original.
-----------------------
*
Colunista da Folha
Fonte:
Folha on line, 05/03/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário