Cotia, 23 de fevereiro de 2012
Caro Mino Carta,
[Captatio benevolentiae pela demora destas
linhas. Passado infelizmente um tempo turvado por longo pós-operatório,
dispus daquelas horas de leitura, intervalo feliz entre os cuidados de que é
feito o cotidiano. Foi só então que pude ler os originais do seu livro.]
Balanço de uma vida, diz o bilhete com que me
chegou este retrato agônico da vida pública brasileira. Nascido em 1936, fui
contemporâneo dos sucessos narrados. Mas, lido este Brasil, vejo pessoas
e acontecimentos à luz de outro olhar. Mais intenso, quase ofuscante, não raro
cruel. No começo da leitura pareceu-me que a ferinidade vinha de uma visada mais
aguda e ácida que a do comum dos mortais. Mas não, não era só isso. Era a
própria realidade que se revelava na sua crueza. Crueza cruel, com o perdão do
pleonasmo. Retratar o nosso homo politicus é lidar com o nauseante: que
galeria de patifes talvez superada apenas pela dos jornalistas! Aqui o narrador
pôs o dedo na ferida, mas, em vez de sangue fresco, o que jorrou foi pus.
Lembra, de longe, a fauna satirizada por Lima Barreto nas Recordações do
Escrivão Isaías Caminha, mas tão deteriorada que desafia qualquer hipótese
progressista em relação à história da nossa espécie.
Sempre desconfiei dos colunistas de nossos
jornalões. Agora vejo estampada em negrito a sua venalidade, a completa
expressão da covardia e do oportunismo. A exceção luminosa de Cláudio Abramo
brilha, de raro em raro, servindo apenas para que o leitor entreveja o negrume
da malta. Que figura organicamente lastimável esse Abukir (pouco importa se
figura à clef, ou não), que atravessa o livro de ponta a ponta e só teve
um momento fugaz de autoconsciência nas páginas finais! Aí o autor acertou em
cheio dando a palavra, entre cínica e confessional, a esse títere do sistema
trabalhado em terceira pessoa ao longo do texto. No final, as personagens, quase
sempre meros tipos sociais, tem a oportunidade de se converterem em pessoas. Não
todas, é bem verdade, pois o tipo é inerente ao gênero satírico da escrita. E
qual o desígnio do seu texto? Levar ao ridículo a nossa burguesia arrivista e
puni-la metodicamente, mas sem nenhuma esperança de corrigi-la. Já não daria
mais para crer no ridendo castigat mores? Parece que não. Tudo ficou
opaco, tudo mercadoria subindo ao primeiro plano, tudo status dentro de cada
carreira profissional.
A caricatura expõe traços obsessivos. O
narrador nunca deixa de pontuar o cafonismo kitsch colado ao granfinismo
paulista e figurado pelo ponto de vista de um anarco-sindicalista aristocrático
e renascentista chamado Mino Carta. Afinal, “nel mondo non c’è che volgo”,
palavra de Maquiavel ajustada à semicultura dos políticos e jornalistas que não
cessam de nos infelicitar. Farpas lançadas contra as veleidades gastronômicas e
as indumentárias dos figurantes valem como portraits de uma classe sem
classe.
No entanto, há clareiras neste carrascal. Quem
diria que o enigmático Golbery conseguisse passar quase incólume pela malha
apertada de um juiz invariavelmente democrático e progressista, que é o nosso
narrador? Pois passa; é o olhar humanizado por uma longa experiência da
fragilidade humana que o valia, e é capaz de compensar a triste astúcia do
maquiador de golpes com a melancolia do jogador derrotado em um momento digno do
seu destino. (Terei entendido bem?)
E há a figura imponente do chevalier sans
peur et sans reproche, Raymundo Faoro. Não conheci o privilégio de tê-lo
como confrade, mas a honra de tê-lo como eleitor. Um voto que ainda me
surpreende e comove. E há os que ajudam a matizar o quadro sinistro: Ulysses,
Montoro, Severo Gomes, mas são tão poucos… E a imagem de Lula, que apesar dos
pesares, resiste galhardamente.
No tecido que remata o livro, sinto em Paulo
alguém que me dá vontade de abraçar fraternalmente.
Mas é já tempo de reconhecer, ao longo de cada
página, uma voz amarga, ainda que animosa. É a voz que fundou o Jornal da
República, e que se desenha, em corpo inteiro, na tocante autobiografia
do jornalista intimorato, homem digno de outro jornalista, que o gerou e
instruiu.obrigado,Alfredo Bosi
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