O maior desejo de Jesus é que tenhamos
um coração alegre e que ninguém possa arrebatar-nos essa alegria (Jo
16, 22). É essa, precisamente, a intenção da oração de súplica: «Até agora não
pedistes nada em meu nome: pedi e recebereis, para que a vossa alegria seja
completa» (Jo 16,24). É também a razão da vinda de Jesus. Vem para
trazer a vida e a alegria: «Eu vim para que as ovelhas tenham vida e a tenham em
abundância» (Jo 10,10).
(...)
A tristeza, ou a penitência que a
exprime, é sinal de que Jesus não está ou deixou de estar presente. É por isso
que Jesus deixa de jejuar depois da Ressurreição, como atestam os relatos da
Ressurreição: impressiona verificar como o pão é partido e comido, uma e outra
vez (Lc 24, 30.35; Jo 9, 13). O Esposo regressou e o discípulo
de Jesus tem, por isso, o direito de receber, neste mundo, o cêntuplo prometido
(Mc 10, 30). E porque não?! De acordo com as palavras de Jesus, os
nossos nomes estão inscritos no céu, para nossa maior alegria (Lc 10,
20).
A pergunta, no entanto, deve ser
feita - mesmo que quiséssemos evitá-la, ela impor-se-ia, inevitavelmente: Donde
vem essa alegria? Que ligação existe entre ela e a alegria que o mundo pode dar?
É difícil responder, se ainda não experimentámos a alegria dada por Jesus. Por
isso, as opiniões são bastante divergentes, mesmo entre os teólogos de
profissão, Uns insistem no facto de que a alegria deste mundo é já um reflexo e
um gosto antecipado da alegria futura do Reino. Querem dizer com isto que a
alegria deste mundo não pode ser ignorada e que tem a sua importância. Contém já
a alegria futura. Outros, pelo contrário, põem o acento na necessidade de
renunciar às alegrias passageiras deste mundo, de olhos fixos na alegria que há
de vir. Encontramos as duas tendências na história da espiritualidade. Alguns
insistem na continuidade entre o que agora é e o que será no Além, mas de uma
maneira muito melhor; outros sublinham a passagem para a luz e a rutura
provocada por essa passagem. Para estes, não existe denominador comum entre a
alegria deste mundo e a alegria de Jesus.
Neste campo, nem sempre é preciso
chegar a uma síntese teológica perfeitamente satisfatória. Basta saber viver com
as nossas alegrias simples e procurar cada vez mais recebê-las das mãos de Jesus
e através do Espírito Santo. Se o conseguirmos, qualquer coisa transformará
pouco a pouco a nossa alegria, um tanto mundana e egoísta na sua origem. Assim
que Jesus entra em cada uma das nossas alegrias, já não podemos senão crescer na
alegria. Mesmo que isso raramente aconteça sem ferida ou' laceração': são esses
os sinais de uma vida em crescimento e, portanto, também de uma alegria cada vez
mais profunda e que se eleva cada vez mais alto.
Esta tensão entre o hoje e o
amanhã, o presente e o passado, o que vem e o que fica, também se encontra no
Evangelho. Este fala-nos constantemente da alegria.No entanto, não escapamos à
sensação de que a alegria atual é sempre limitada e deque tudo tem um fim. A
alegria perfeita e completa de que fala Jesus não se identifica com as alegrias
do mundo. É como se não pudéssemos passar destas à alegria futura sem que
qualquer coisa de perturbador aconteça, mesmo à escala planetária. O Reino de
Jesus não é realmente deste mundo (Jo 18, 36), embora a semente já
tenha sido semeada e germine de modo misterioso.
(...)
A relação entre Jesus e a nossa
alegria neste mundo não é fácil de detetar. Se queremos seguir Jesus pelo
caminho da sua alegria, sentimos sempre a grande tentação de nos afastarmos dEle
e de procurarmos as nossas pequenas alegrias transitórias e limitadas, correndo
assim o risco de perdermos para sempre a verdadeira alegria. É como se a alegria
de Jesus avançasse em espiral rumo a um ponto central. Supõe-se que nós seguimos
a curva dessa espiral tão fielmente quanto possível. Mas, ao mesmo tempo, somos
continuamente tentados a esquivar-nos, a sair da espiral e continuar
absolutamente sozinhos. Nesse caso, é enorme o risco de nos afastarmos do Reino
de Deus, no centro da espiral, e de nos perdermos, temporária ou
definitivamente, nas nossas insignificantes alegrias humanas. Aqui surge de novo
a questão: devemos, então, renunciar à alegria para seguir Jesus? E, se sim, em
que medida? Ou pelo contrário: a penitência e a mortificação não significam
passar pelo caminho de Jesus, a fim de alcançar a alegria perfeita, a alegria em
plenitude (Jo 15,11)? Assim como existe um amor levado ao extremo, que
passa pela morte de Jesus (Jo 13, 1), não poderia haver uma alegria
levada ao extremo, através dessa mesma morte e Ressurreição?
Antes de continuarmos; sublinhemos,
por um momento, que a alegria verdadeira não é, antes de mais, um sentimento de
exaltação. Não convém confundir a alegria corri as suas diversas expressões a
todos os níveis: existe o prazer, o conforto, a alegria intelectual e artística,
a alegria do trabalho bem feito ou do empreendimento conseguido; há, sobretudo,
as. alegrias incontáveis das relações humanas, incluindo a alegria do amor, que
deve acompanhar o homem ao longo de toda a sua vida. E, no entanto, todas essas
experiências não passam de formas exteriores da alegria. Quanto mais importantes
forem essas formas, mais profundas as suas raízes. A alegria verdadeira situa-se
a uma grande profundidade, e deveríamos cavar profundamente em nós até fazê-la
jorrar. É esse sem dúvida o sentido da expressão que costumamos usar quando
queremos exprimir uma grande felicidade: Estou profundamente feliz. É por isso
que qualquer. grande felicidade é também silenciosa. Não se pode exprimir. É
indizível. Raramente aflora à superfície e nós seríamos incapazes de ostentá-la.
Somos habitados por essa alegria na própria raiz do nosso ser.
A alegria é o terreno de cultura
onde toda a vida lança raízes para ter condições de existir. Não poderíamos
viver sem alegria, ou melhor: não poderíamos sobreviver. A alegria brota mais
particularmente em momentos existenciais extraordinários, quando nos é dado
fazer a experiência da nossa realidade profunda, da beleza ou da vida. Pensemos
na alegria que pode ocasionar uma obra de arte: A thing of beauty is a joy
for ever (uma coisa bela é uma alegria perene). No prazer artístico, brota
a verdadeira alegria, porque, precisamente, graças à arte, desco brimos melhor o
ser das pessoas e das coisas e, de certo modo, tocamo-las. Há nisto qualquer
coisa que não podemos observar pela via ordinária dos sentidos. A realidade
profunda dos outros é 'algo habitualmente inexprimível. Mas a alegria que
experimentamos no contacto com um ser é sempre sinal de que nos é dado comungar
profundamente com ele.
Esta alegria vai crescendo à medida
que cresce o nosso ser. Porque a alegria é a característica dum ser vivo e em
crescimento, dum ser que se desenvolve num «ser-mais». A alegria, portanto, vai
sempre ligada à dinâmica das pessoas e das coisas. Contém um ritmo que, para o
nosso próprio desenvolvimento, é importante nós abraçarmos. A alegria que jaz na
fonte do nosso ser impele-nos, também, cada vez mais longe. É próprio dela
fazer-nos crescer no ser. SÓ a alegria é capaz disso.
fazer-nos crescer no ser. SÓ a alegria é capaz disso.
Ali, onde a vida está a crescer,
brota sempre uma nova alegria. O exemplo mais evidente é a alegria ligada à
paternidade e maternidade, a partir da conceção, cujo prazer é sinal duma
alegria e dum amor que vêm de algo mais alto do que o humano. Em tudo aquilo em
que o homem participa da criação, desponta uma alegria nova e desconhecida. É
assim que a alegria também está ligada ao 'processo de crescimento espiritual.
Sobretudo quando alguém pode acolher uma vida nova da parte de Deus. É assim a
alegria profunda do arrependimento, quando Deus nos recria no seu amor
misericordioso. Um dos momentos existenciais mais intensos da nossa vida é, sem
dúvida,·quando somos tocados pela graça e pela misericórdia de Deus, a fim de
vivermos novamente nEle. É esse, também, o caso da amizade, quando nos sentimos
aceites por outro com o nosso ser mais profundo, que ainda se encontra
provisoriamente escondido a nossos olhos mas que já é reconhecido pelo amor dum
outro. Na verdadeira amizade, o encontro nunca encerra qualquer ameaça. Estamos
autorizados a ser plenamente nós mesmos, mais profundamente do que aquilo que se
vê por fora. Por isso é que nós dizemos que a amizade «nos faz bem», querendo
com isto significar que ela nos sustenta e nos ajuda a desenvolver o melhor de
nós mesmos.
A alegria é, pois, uma
característica do ser, na medida em que este cresce e alarga as suas fronteiras.
De certo modo, a nossa alegria precede sempre um pouco a situação em que nos
encontramos presentemente. É um apelo e um desafio. É alegria na medida em que
aceitamos estar já situados mais longe, num outro, ou em Deus, mais longe do que
onde nos encontramos de momento. Mas à medida que a alegria nos faz entrar na
espiral da felicidade, existe também o perigo de nos desviarmos e nos perdermos
numa outra felicidade. Encontramos frequentemente, nas pegadas da alegria,
encruzilhadas em que há a possibilidade de nos esquivarmos para uma felicidade
estreita e limitada, na qual, com o tempo, corremos o risco de nos enredar. Esta
alegria imediata não vem necessariamente do maligno. Não. Mas também já não é a
nossa alegria habitual, a alegria que responde ao nosso ritmo profundo, neste
momento. Embora preciosa, afasta-nos da nossa dinâmica interior. Poderíamos
estar mais longe, mais perto. já da alegria absoluta, no centro da espiral.
Porque viver é crescer, e crescer sempre mais. Viver é desenvolver-se; uma vida
que deixa de se desenvolver já está morta. É por isso que a verdadeira vida
exige sempre alguma dilaceração, a fim de entrar num renascimento cada vez mais
profundo. Dilaceração que se assemelha às dores e à alegria do parto.
A única ascese que se pode impor à
alegria abrange o seu ritmo. É o movimento da espiral que vai abandonando cada
vez mais os círculos exteriores, a fim de se dirigir para o seu centro mais
íntimo. A ascese da alegria é, portanto, a própria alegria. A verdadeira alegria
- como o verdadeiro amor - leva em si a sua própria purificação. Para purificar
uma alegria não convém nunca restringi-la desde fora. Basta seguir-lhe as
pegadas, abraçar a espiral. Impossível, então, escaparmos à purificação: ela
está na própria alegria. Para salvar a verdadeira alegria, precisamos sempre de
nos desprender do que não passa de uma sua expressão provisória. Temos de estar
dispostos, a cada momento, a abandonar um pobre gozo limitado, para cavarmos até
chegarmos a uma alegria mais profunda, até à alegria extrema, que coincide
sempre com o amor extremo.
Só se pode falar de ascese ou de
penitência tendo em vista a alegria. A penitência nunca deve agredir a nossa
alegria, como se toda a alegria devesse ser suspeita e não pudesse ser vivida
senão com má consciência; como se toda a alegria tivesse de ser expurgada ou
restringida desde fora. A ascese não é mais do que entregar-se à vida verdadeira
e à alegria profunda que nos habitam. Nesse sentido, ela não é de modo algum um
agere contra, um «agir contra», mas antes um agere secundum,
um «agir conforme» à alegria, em harmonia com o nosso ser profundo; ou, se
quisermos ainda acentuar a dinâmica particular da alegria, a ascese não pode
ser senão um agere ultra, um «ir mais além», um ultrapassar a alegria
provisória e limitada que só foi concedida para ontem e hoje e que amanhã será
completamente nova.
É por isso que a verdadeira ascese
tem pouco que ver com a força de vontade e não deve nunca levar à crispação.
Muito pelo contrário. A ascese é um abandono descontraído e submisso, perante a
alegria que nos habita, uma paragem e uma abertura . que permite à vida
desenrolar-se sem obstáculo e quase sem dificuldade. É a libertação e o
nascimento dum homem novo. A ascese recorda assim surpreendentemente aquilo a
que chamam parto sem dor. (...)
Todo o discípulo de Jesus, em quem
a vida de Jesus deve crescer constantemente, encontra-se, como esta mulher que
dá à luz, entregue à dor e à alegria do crescimento. Vive dessa alegria, isto é,
a partir da medida perfeita da estatura adulta de Jesus Cristo, para a qual ele
tende. É por isso que a sua ascese é sempre alegre, e a única medida da sua
ascese tem de procurar-se na alegria que lhe é dada pelo Espírito Santo. Não diz
S. Bento na sua Regra que toda a ascese e mortificação extraordinárias não têm
valor senão na medida em que se puderem oferecer a Deus com a alegria que
procede do Espírito Santo? (R.B. 49,6). Importa, pois, que todo o discípulo de
Jesus abrace a sua alegria. Há duas maneiras de lesar a alegria, ao mesmo tempo
que a vida de Deus em si: ou apontando para mais além da alegria que se recebeu
efetivamente; ou ficando aquém da alegria que nos está destinada.
No primeiro caso, queremos fazer.
um esforço, mesmo privados de alegria. É o exemplo típico de uma má ascese: uma
ascese que não é orientada pelo impulso do Espírito Santo, de que a alegria é o
fruto sensível. Uma ascese assim resulta nula e não aceite aos olhos de Deus.
Não passa de um esforço pagão, na maioria das vezes misturado de presunção e
orgulho. Podem detetar-se aqui tendências masoquistas, que encontram a sua
satisfação em práticas de penitências suspeitas. Nada disto tem algo a ver com a
graça. No melhor dos casos, pode ser indício de boa vontade, que Deus, aliás,
não deixa sem recompensa, mas de que não tem em absoluto qualquer necessidade.
Uma ascese pagã leva-nos a apontar para além do que nos foi dado como medida da
graça na alegria do Espírito. Com o tempo, poderia extinguir essa alegria e
embotar perigosamente a nossa sensibilidade espiritual.
Mas acontece mais frequentemente
ficarmos aquém da alegria que nos é dada e, com isto, fazermos agravo à graça e
à vida de Jesus em nós. Por medo do sofrimento que acompanha sempre todo o
processo de crescimento, ficamos apegados à nossa felicidadezinha limitada. Esta
pode parecer-se a uma alegria realmente espiritual: alguma consolação na oração,
algum sucesso no apostolado. Porque também é possível apegar-se a uma alegria
espiritual ao ponto de já não nos permitir avançar rumo a uma alegria mais
profunda. Por isso, é bom orar de vez em quando, a fim de descobrirmos em nós
essa alegria profunda, ou melhor ainda, para que ela algum dia se apodere de
nós. Sempre que a ascese se encontra plenamente em consonância com a alegria,
torna-se livre, feliz e irradiante. Já não será preciso, então, apegar-se a
qualquer felicidadezinha passageira. A própria alegria de Jesus se apegará a nós
e nos levará, através de toda a mortificação, até à ressurreição e à vida
nova.
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* Título do blog. Imagem da
Internet.
A. Louf, Ao ritmo do
Absoluto, A.O., Braga 1999, 125-135
Seleção de Teresa Messias, professora na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
Seleção de Teresa Messias, professora na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa
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