Prêmio Nobel de literatura, o peruano Mario Vargas Llosa fala sobre a importância cultural do erotismo e o perigoso vazio das redes sociais
Ubiratan Brasil - O
Estado de S.Paulo
"Se tivesse que salvar do fogo apenas um de
meus romances, salvaria Conversa no Catedral." Anos depois de dizer essa frase,
o escritor Mario Vargas Llosa garante que a mantém viva. Considerado um de seus
principais livros, traz o retrato do Peru durante a ditadura dos anos 1950 a
partir de Zavalita, jornalista que prefere a omissão a compactuar com os
políticos. Colaborador do Estado, Llosa virá a São Paulo em abril para o
Fronteiras do Pensamento e falou por telefone com o repórter na sexta-feira,
desde Lima, sobre a obra agora relançada pela Alfaguara.
Joaquim Sarmiento/Reuters
Llosa: Em defesa do Estado laico com liberdade
religiosa
Quais lembranças o senhor guarda do
romance?
O romance me faz lembrar uma
história interessante. Quando foi publicado, em 1969, passou despercebido pela
crítica e público - só era lembrado de forma negativa, por conta de sua
estrutura narrativa. Só com o tempo, foi ganhando leitores e, curiosamente, hoje
é um dos meus livros mais conhecidos. Venceu a prova do tempo.
No texto escrito especialmente para o
'Estado', o crítico Carlos Granés faz uma pergunta que repasso ao senhor: que
papel têm as crenças e a moral na vida humana?É um tema atual. Um
dos grandes problemas do nosso tempo é a corrupção, que afeta por igual países
ricos e em desenvolvimento, democracias e ditaduras. Há um desrespeito
generalizado da ética, o que provoca delinquência, especialmente na política.
Isso não acontecia antes. É o que explica como governos, embora imundos e
apoiados pelo narcotráfico, algumas vezes contam com apoio da população, que
acredita ser assim a política. É uma atitude cínica frente ao poder, o que
explica o desaparecimento da censura social ao delito. Esse é o tema central de
Conversa no Catedral.
Outro detalhe importante do livro é seu
personagem principal, Zavalita, que parece ser único em sua obra,
não?Sem dúvida. Zavalita é mais passivo, menos lutador, mas um
personagem épico. Há uma frase vulgar no livro que o define bem: "Quem não se
f..., f... os demais". Ele não quer triunfar, pois, no país em que vive, só
progride quem prejudica os outros. Prefere ser vítima. Assim, embora ético, é um
homem medíocre por opção e ele se destaca, sim, no contexto de meus personagens,
mas é uma forma que encontrei para protestar contra a delinquência
mundial.
A dificuldade de entendimento que o
romance enfrentou na época de seu lançamento me fez lembrar outro livro seu, A
Civilização do Espetáculo, que sairá no Brasil em outubro, no qual o senhor
elogia obras que exigem do leitor um esforço tão grande como o desprendido pelo
autor.
É um livro para leitores
ativos, participativos, pois existe na trama uma obscuridade que reflete uma
sociedade onde tudo é turvo, opaco. Procurei descrever aqui o impacto provocado
pela ditadura em minha geração. Quando o general Odría deu o golpe de Estado, em
1948, éramos crianças e, quando ele deixou o poder, oito anos depois, já éramos
adultos. Ou seja, passamos a adolescência em uma sociedade vertical, sem
partidos políticos ou imprensa livre, além do medo instalado na população, com
policiais cercando universidades. Era esse momento que tentei descrever no
romance: mostrar como uma ditadura não estava confinada na política, mas que
degradava a vida das famílias.
O efeito pernicioso avançou no tempo e
chegou aos nossos dias, quando é cada vez mais escassa a figura do intelectual,
concorda?Totalmente. Esse é outro fenômeno inquietante de nossa
época. O desaparecimento do intelectual significa também o desaparecimento das
ideias e da razão como um fator central da vida social e política. Hoje em dia,
as ideias foram trocadas pelas imagens, que são mais facilmente manipuláveis.
Isso é uma grande ameaça para a democracia, pois uma sociedade com escassez de
ideias tem suas instituições sob forte risco.
O que o senhor pensa sobre o poder das
redes sociais?
Por um lado, há um aspecto
positivo, pois as redes sociais aumentaram o poder da comunicação e da
informação. Também dificultam a instauração da censura, como acontecia na
América Latina há 40 anos - as redes sociais rompem qualquer controle. Por outro
lado, o excesso de informação leva à confusão. Parece que vivemos em um bosque
confuso onde não sabemos como nos orientar com segurança. Isso porque hoje em
dia praticamente desapareceu uma instituição que, no passado, cumpria uma
importante função na vida cultural e política: a crítica. Nas redes sociais, não
há uma valoração da informação seguindo hierarquia tradicional, que distingue o
essencial do secundário. Daí a confusão a que me referi antes.
E qual seria, nesse caso, a função da
religião? O senhor sempre defendeu uma vida espiritual plena, mas sem nenhuma
identificação com o Estado, certo?
As religiões, sem exceção, são
intolerantes, pois trazem verdades absolutas, o que não combina com o espírito
democrático. Ao mesmo tempo, uma democracia sem uma vida espiritual se converte
em uma selva, como já disse Isaiah Berlin, em que os lobos comem todos os
cordeiros. E, para que a cobiça e ambição material não regulem a vida, é preciso
alimentar a vida espiritual. Mas o Estado não pode se identificar com qualquer
religião - a história é pródiga em exemplos nefastos como perseguições,
intolerância, inquisição. É importante ter um Estado laico com liberdade
religiosa.
O que o senhor espera do novo papa,
Francisco?
Espero que inicie o processo de modernização da
Igreja, libertando-a de anacronismos como não tratar de temas como sexo e
mulher. Caso contrário, vai continuar perdendo audiência. Os problemas com
pedofilia que quase destruíram a Igreja nasceram dessa intolerância ao sexo. E
Francisco parece ser moderno, com atitudes mais congregacionais.
Por falar em sexo, no livro A
Civilização do Espetáculo, o senhor defende o erotismo como obra de
arte.
Sim, o
erotismo é resultado da cultura que, vinculado ao sexo, é transformado em uma
atividade criativa. O erotismo é uma manifestação das civilizações e acontece em
sociedades que alcançaram um certo nível de progresso humano. Por isso que cito
muito Georges Bataille, defensor desse pensamento: ele sempre foi muito
reticente à permissividade total, responsável por matar as formas, o que levaria
o homem a retornar à uma espécie de sexo primitivo, selvagem. Infelizmente, isso
ainda acontece em nosso tempo.
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Fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso 17/03/2013
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