domingo, 26 de janeiro de 2014

Os santos senhores de escravos

Jerônimo e Zélia podem ter sido até mesmo boas almas, cristãs, fervorosas. Mas santificar o casal de escravocratas é o mesmo que santificar uma ordem injusta.

Ninguém jamais foi santo possuindo escravos.

Recife (PE) - Esta semana, foi notícia no Jornal Nacional e em todas as visões e tevês:
O Brasil pode ter o primeiro casal de beatos. Eles viveram nos séculos 19 e 20, no Rio de Janeiro, e tiveram uma vida totalmente dedicada à igreja e à caridade. Jerônimo de Castro Abreu Magalhães nasceu em Magé, na Baixada Fluminense, em 1851. Zélia Pedreira Abreu Magalhães, em Niterói, no ano de 1857.

O casal era rico, dono de uma fazenda de café na época da escravidão e eram considerados um exemplo de bondade. “Todos aqueles que os serviam, e nesse período eram os escravos, 500 escravos, mas todos eles tinham salários, todos eram tratados com dignidade, tinham moradia. A grande preocupação não era acumular dinheiro”, ressalta Dom Roberto Lopes, da Arquidiocese do Rio de Janeiro..

"A partir de agora, a história de Zélia e Jerônimo vai ficar mais conhecida. E o casal já conquista novos devotos. Nesta primeira etapa, a Arquidiocese do Rio vai recolher documentos e ouvir testemunhas. Depois, encaminhar ao Vaticano. A beatificação depende de um milagre”.

Por isso não, o milagre já foi conseguido: tornaram santa a boa escravidão no Brasil.. Amigos, não vou entrar no mérito dos processos de beatificação em geral, para não cair em desgraça ou exibição do meu desconhecimento sobre as vidas dos beatos e dos santos. Mas aqui, no caso particular de Zélia e Jerônimo, saímos do capítulo da mistificação para um crime contra a história: como é possível um processo de beatificação para senhores escravocratas? Mais: como é possível que esse paradoxo se noticie sem uma sombra sequer de pluma da dúvida?

Mesmo em se tratando de personagens do século XIX, de ricos senhores das almas e corpos em fazendas de café, não podemos deixar de ver um dilema. Se Jerônimo e Zélia algum dia fizessem um exame honesto de consciência, daqueles exames feitos antes de uma honrada confissão, eles não poderiam fugir desta encruzilhada: ou libertavam os seus escravos, ou eram parasitas do suor de homens e mulheres negros. Não pode haver honra que sobreviva em um escravocrata, por mais bem intencionado que seja. O papel que ele exerce é um pecado sem remissão.

O interessante, como um mal sem cura, como o desenvolvimento de uma doença, é que as tentativas de amaciamento da crueldade da escravidão no Brasil continuam nesse processo de beatificação, com a imagem do bom senhor de escravos. “Zélia e Jerônimo nunca tratavam seus escravos como sendo propriedade sua, lá eles viviam em liberdade e recebiam inclusive salário”, dizem sobre os novos santos. E mais: “o tratamento dispensado ao elevado número de escravos que trabalhavam na Fazenda Santa Fé era tão humano que, após a abolição da escravatura, nenhum dali saiu, aí continuando a viver e trabalhar.” Mas como? Esse comportamento não foi único, na vontade de homens tornados escravos também na alma, que não tinham opção: ou continuavam com seus bondosos, ou saíam para morar na rua e viver na fome.

De uma descrição de arquitetos que visitaram a antiga fazenda Santa Fé, a propriedade dos santos senhores de escravos, copio o trecho: “as senzalas possuíam construções distintas para homens e mulheres.”. O que era um ato piedoso, sem dúvida, comento aqui, pois assim evitavam a promiscuidade da negraria no cio. E mais: “A Fazenda Santa Fé, ainda segundo Antônio Pinto Corrêa Júnior, produzia anualmente 20 mil arrobas de café, chegando a produzir 40 mil arrobas em alguns anos”. Agora imaginem tamanha fortuna se construindo sob o regime de uma caridosa escravidão.

O gênio Charles Darwin no diário da sua passagem no Brasil, em 1871, escreveu que uma vez, ele irritado, falando alto, gesticulou com a mão próxima ao rosto de um escravo. E teve como resposta, diante de si, um homem com os braços soltos para baixo, com a fisionomia transfigurada pelo terror, com os olhos semicerrados, na atitude de quem esperava uma bofetada, e dela não podia se esquivar, paralisado. E Darwin anotou: “Nunca me hei de esquecer da vergonha, surpresa e repulsa que senti ao ver um homem tão musculoso ter medo até de aparar um golpe, num movimento instintivo. Este indivíduo tinha sido treinado a suportar degradação mais aviltante que a da escravidão do mais indefeso animal”.

Agora, a Igreja deseja tornar santos dois senhores de escravos. As pessoas de Jerônimo e Zélia, como novos Romeu e Julieta, para o conjunto de escravocratas talvez fossem até generosas. Talvez oprimissem mais suave, sob a doce e benevolente coerção, quem sabe, algo do gênero “se o negro faltar à produção, papai do céu castiga”.Jerônimo e Zélia podem ter sido até mesmo boas almas, cristãs, fervorosas. Mas santificar o casal de escravocratas é o mesmo que santificar uma ordem injusta. Ninguém jamais foi santo possuindo escravos.
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Fonte: http://www.diretodaredacao.com/25/01/2014

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