Lygia Vampré Humberg e Leopoldo Fulgencio*
Programas voltados ao cuidado com a primeira infância seriam mais eficazes no combate ao crack do que
as campanhas em vigor
Sucessivas ações de combate à epidemia de crack têm acumulado derrotas no decorrer dos anos.
Especialistas e leigos reconhecem a profundidade do problema e a insalubridade a que se submetem os dependentes químicos.
Até o ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em 2011, apresentou-se como protagonista do documentário "Quebrando o Tabu", reconhecendo a urgência de uma ação mitigadora.
Muito investimento financeiro e afetivo e, o que é pior, muitas vidas são ceifadas. A prevenção, em geral, aparece na forma de campanhas dedicadas a mostrar os malefícios da droga (como se os usuários não soubessem, a cada uso, de seu poder corrosivo), ou na forma de práticas repressivas, sob o lema da "tolerância zero!". A experiência mostra, porém, que a repressão, ainda que não possa deixar de existir, não tem logrado vitórias.
O problema fundamental, que deveria ser o foco de qualquer ação preventiva, mas não é, concentra-se no motivo pela qual alguns seres humanos procuram e ficam dependentes das drogas. A resposta padrão dá conta de que a droga fornece prazer imediato. Basta um olhar um pouco mais demorado para que se note que, principalmente nos casos de dependência patológica, não é o prazer que dá as cartas.
É certo que o uso de substâncias alteradoras dos estados de consciência faz parte dos hábitos humanos. Mas é o uso patológico e destrutivo, a escravidão à droga, que está em questão. Onde poderíamos encontrar a gênese dessa patologia?
Psicanalistas como Donald Winnicott e Joyce McDougall propuseram a hipótese de que as drogas são uma tentativa do indivíduo de encontrar-se a "simesmo" ("self"), ainda que, paradoxalmente, elas desintegrem o corpo e a vida.
Para nós, as drogas são uma tentativa fadada ao fracasso, uma vez que não fornece duradouramente a integração procurada. Trata-se de uma solução, além de efêmera, externa para um problema interno!
A origem das adições deve ser buscada na primeira infância, não propriamente localizada em algum trauma, mas em situações que possam ter produzido quebras significativas no sentimento de ser e de continuar sendo. São elas que estão na origem das adições, como também na de outros distúrbios mais graves, como a psicose e a atitude antissocial (ainda que fatores constitucionais possam contribuir, como uma série complementar, para a instalação dessas patologias).
Se houvesse programas voltados para os cuidados com as mães e o ambiente de sustentação da primeira infância, ou seja, o fornecimento de ambientes humanos confiáveis, estáveis e previsíveis, atendendo às necessidades básicas de comida e contato afetivo, isso nos levaria à constituição de pessoas eticamente mais estruturadas. Uma ética do cuidado produzindo seres humanos que cuidam de "simesmos" ("selves") e dos outros.
Não é vaga a afirmação de Winnicott segundo a qual é no brincar (infantil ou adulto) que o ser humano encontra a "simesmo". Esse brincar, mais do que uma ação que faz rir, corresponde a uma atividade criativa, individual ou coletiva, na qual o ser humano encontra tanto a "simesmo" quanto, no brincar compartilhado, os outros; tal como ocorreria na vida cultural saudável, que nada mais seria do que o brincar do adulto.
A constituição de ambientes de sustentação da infância, nessa perspectiva de compreensão do desenvolvimento emocional dos seres humano, seria uma atitude preventiva que, como se diz, poderia cortar o mal pela raiz. Programas sociais com esse objetivo seriam mais eficazes e menos custosos do que os bilhões que têm sido gastos com as propagandas de conscientização e com as atividades de repressão.
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* LYGIA VAMPRÉ HUMBERG, 44, é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e faz doutorado sobre vícios na USP
LEOPOLDO FULGENCIO, 54, é professor doutor do programa de pós-graduação em psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Fonte: Folha online, 26/01/2014
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