Russomanno e a vulgaridade do desejo
Eliane Brum*O “patrulheiro do consumidor” lidera em São Paulo porque, se a política é de mercado, ele pode convencer como mercadoria
Como se define um povo? De várias maneiras. A
principal, me parece, é pela qualidade do seu desejo. É por este viés que também
podemos compreender o fenômeno Celso Russomanno (PRB). Como um homem que se
tornou conhecido por bolinar mulheres na cobertura de bailes de carnaval e como
“patrulheiro do consumidor” em programa da TV Record, apoiado pela Igreja
Universal do Reino de Deus, torna-se líder de intenções de votos na maior cidade
do Brasil?
Acredito que parte da resposta possa estar no
desejo. Na vulgaridade do nosso desejo. No que consiste o desejo das diferentes
camadas da população, seja o topo da pirâmide, a classe média tradicional, o que
tem sido chamado de “nova classe média” ou classe C. Para além das diferenças,
que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping
Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias
paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A
identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo
– e para o outro. É para consumir que boa parte da população não só de São Paulo
quanto do Brasil urbano tem conduzido o movimento da vida – e se consumido neste
movimento.
Dois textos recentes são especialmente
reveladores para nos ajudar a compreender o Brasil atual.
Em sua coluna de 4/9, na Folha
de S. Paulo, o filósofo Vladimir Safatle faz uma análise interessantíssima
do caso Russomanno. Ele parte do fato de que a ascensão econômica de larga
parcela da população no lulismo se dá principalmente pela ampliação das
possibilidades de consumo – e não pela ampliação do acesso a serviços sociais de
qualidade. Logo, para essa camada da população, os direitos da cidadania são
decodificados como direitos do consumidor. Nada mais lógico para representá-la e
defender seus interesses do que um prefeito que seja um pretenso “patrulheiro do
consumidor”, bancado por uma das igrejas líderes da “teologia da prosperidade”.
Russomanno seria, na definição de Safatle, “o filho bastardo do lulismo com o
populismo conservador”.
Na ótima reportagem intitulada “O
Funk da Ostentação em São Paulo”, o repórter de Época Rafael de Pino conta
como se dá a apropriação do funk carioca nas periferias de São Paulo. Preste
atenção na abertura da matéria, que reproduzo aqui:
“‘Vida é ter um Hyundai e uma Hornet/10 mil
pra gastar, Rolex e Juliet’, canta o paulista MC Danado no funk ‘Top do
momento’. Para quem não entendeu, ele fala, na ordem, de um carro, uma moto,
dinheiro, um relógio e um par de óculos – um refrão avaliado em R$ 400 mil. Na
plateia do show na Zona Leste, região que concentra bairros populares de São
Paulo, os versos são repetidos aos berros pelas quase 1.000 pessoas presentes,
que pagaram ingressos a R$ 30. O público da sexta-feira é jovem, etnicamente
diverso e poderia ser descrito em três palavras: ‘classe C emergente’.”
MC Danado, como nos conta Rafael de Pino, antes
de se tornar um astro, trabalhou como office-boy e auxiliar de escritório. Ele
diz o seguinte: “Gosto da ostentação, gosto de ostentar. Parte do que canto, eu
tenho. Outra parte, desejo e vou conquistar com meu trabalho”. Vale a pena
conferir os refrões de outros funkeiros da ostentação, como MC Guimê:
“Ta-pa-ta-pa tá patrão, ta-pa-ta-pa tá patrão/Tênis Nike Shox, Bermuda da
Oakley, Olha a situação”. Ou MCs BackDi e Bio-G3: “É classe A, é classe A/quando
o bonde passa nas pistas geral, tá ligado que é ruim de aturar/É classe A, é
classe A/Nós tem carro, tem moto e dinheiro”.
MC Menor, outra estrela ascendente, explica:
“Enxergo o mundo como meu público enxerga. Nasci na comunidade, sei que lá
ninguém quer cantar pobreza e miséria”. Não por acaso, é em São Paulo que o funk
se torna uma expressão do desejo de consumo da juventude emergente das
periferias.
Ao ascender economicamente, a “nova classe
média” parece se apropriar da visão de mundo da classe média tradicional –
talvez com mais pragmatismo e certamente com muito mais pressa. Em vez de lutar
coletivamente por escola pública de qualidade, saúde pública de qualidade,
transporte público de qualidade, o caminho é individual, via consumo: escola
privada e plano de saúde privado, mesmo que sem qualidade, e carro para se
livrar do ônibus, mesmo que fique parado no trânsito. O núcleo a partir do qual
são eleitas as prioridades não é a comunidade, mas a família.
Se no passado recente o rap arrastou multidões
nas periferias de São Paulo com um discurso fortemente ideológico contra o
mercado, hoje o espaço é parcialmente ocupado pelo “funk da ostentação” e seu
discurso de que uma vida só ganha sentido no consumo. As marcas de uma vida não
se dão pela experiência, mas se adquirem pela compra: as marcas da vida são
grifes de luxo, segundo nos informam as letras do funk paulista. Alguns dos
grandes nomes do rap engajado do passado também podem ser vistos hoje anunciando
produtos na TV com desembaraço – o que também quer dizer alguma coisa.
É importante observar, porém, que aquilo que eu
tenho chamado aqui de vulgaridade do desejo não é uma novidade trazida pela
“nova classe média”. Ao contrário, a influência tem sinal trocado. O que os
emergentes da classe C tem feito é se apropriar da vulgaridade do desejo das
elites. O funk da ostentação de MC Danado, ao recitar grifes e fazer uma ode ao
consumo, pode estar na boca de qualquer socialite que possamos entrevistar agora
no corredor de um dos shoppings de luxo.
Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.
Neste contexto, a vulgaridade do desejo tem em Russomanno sua expressão mais bem acabada na política. Assim como na religião encontra expressão em parte das igrejas evangélicas neopentecostais e sua teologia do compre agora para ganhar agora. Nesta eleição de São Paulo, testemunhamos uma aliança e uma síntese da nova configuração do Brasil – possivelmente menos transitória do que alguns acreditam ser.
Russomanno não inventou a vulgaridade do desejo
– apenas a explicitou e tratou de encarná-la. Seus oponentes têm uma biografia
muito mais relevante, assim como partidos mais sólidos. Mas parecem ter perdido
essa vantagem junto a setores da população no momento em que se renderem à
lógica do consumo e viraram também eles um produto eleitoral. Pela adesão à
política de mercado, perderam a chance de representar uma alternativa, inclusive
moral.
José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.
José Serra (PSDB) tem feito quase qualquer coisa para conquistar o apoio das igrejas na tentativa de vencer as disputas eleitorais. Basta lembrar como um dos exemplos mais contundentes o falso debate do aborto estimulado por ele na última eleição presidencial, na ânsia de ganhar o voto religioso. E Fernando Haddad (PT), que se pretende “novo”, antes do início oficial da campanha já tinha abraçado o velho Maluf. Para quê? Para ter mais tempo de TV – o lugar por excelência no qual os produtos são “vendidos” aos consumidores.
Quem transformou eleitores em consumidores de
produtos eleitorais não foi Celso Russomanno. Ele apenas aproveitou-se da
conjuntura propícia – e não perdeu a oportunidade ao perceber que os outros
reduziram-se a ponto de jogar no seu campo. Afinal, de mercadoria Russomanno
entende.
É bastante interessante que entre os mais
perplexos diante deste novo Brasil, representado pelo fenômeno Russomanno,
estejam o PT e a Igreja Católica. Ambos, porém, estão no cerne da mudança que
agora se desenha com maior clareza.
A “era” Lula marcou e segue marcando sua
atuação também pelo esvaziamento dos movimentos sociais – e da saída coletiva,
construída e conquistada que foi decisiva para a formação do PT. Também
estimulou sem qualquer prurido o personalismo populista na figura do líder/pai.
Assim como na campanha que elegeu Dilma Rousseff, a sucessora de Lula no governo
foi apresentada como filha do pai/mãe do povo. Em nenhum momento, nem o PT nem
Lula pareceram se importar de verdade com o fato de que os numerosos militantes
que no passado ocupavam os espaços públicos com suas bandeiras e seu idealismo
foram gradualmente sendo substituídos por cabos eleitorais pagos, em mais uma
adesão à lógica de mercado.
A cúpula da Igreja Católica no Brasil, por sua
vez, atendendo às diretrizes do Vaticano, esforçou-se nas últimas décadas para
esvaziar movimentos como a Teologia da Libertação, que representavam uma
inserção do evangelho na política pelo caminho coletivo e pela formação de base.
Esforçou-se com tanto afinco que perseguiu alguns de seus representantes mais
importantes – e marginalizou outros. Mas parece que nem o PT de Lula nem a CNBB
têm compreendido que o fenômeno Russomanno também foi gerado no ventre de suas
guinadas conservadoras – e, no caso do PT, de suas alianças pragmáticas e da sua
atuação para transformar a política num balcão de negócios. Sem esquecer, claro,
que o PRB de Russomanno é da base de apoio do governo Dilma.
Quando a presidente do país dá o Ministério da
Cultura para Marta Suplicy, para que ela suba no palanque do candidato do PT à
prefeitura de São Paulo, por mais que os protagonistas aleguem apenas
coincidência, é só política de mercado que enxergamos. E tudo piora quando Marta
invoca uma trindade político-religiosa no palanque de Haddad: “O trio é capaz de
alavancar (a candidatura de Haddad): a presidente Dilma, o Lula e eu. Eu, porque
tenho o apelo de quem fez; eu sou a pessoa que faz. O Lula porque é um ‘deus’ e
a presidente Dilma porque é bem avaliada. Então, com a entrada desse trio, vai
dar certo”.
Diante do que está aí, feito e dito, por que o
eleitor vai achar que Russomanno é pior? Ou que as alternativas a ele são de
fato diferentes?
O mais importante não é atacar Celso
Russomanno, mas compreender o que ele revela do Brasil atual. O fenômeno
Russomanno pode ter algo a nos ensinar. Quem sabe sua liderança nas pesquisas
eleitorais possa mostrar aos futuros candidatos que ética e coerência na
política valem a pena se quiserem se tornar alternativas reais para uma parcela
do eleitorado. Ou que se nivelar por baixo em nome dos fins pode ser um tiro no
pé – tanto quanto se aliar com qualquer um. E talvez o fenômeno Russomanno possa
ensinar aos futuros governantes que um povo se define pela qualidade do seu
desejo. E desejo só se qualifica com educação.
Sempre se pode lamentar que o eleitor deseje o
que deseja, mas o eleitor – em geral subestimado – sabe o que quer. Se a maioria
acredita que tudo o que dá sentido a uma vida humana pode ser comprado num
shopping, então São Paulo – e o Brasil – merecem Celso Russomanno.
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Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios
nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma
Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso
da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007)
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