"O saudoso, por sua vez, voa, vai e volta, traz e devolve, revive como se estivesse vivendo pela primeira vez.
O saudoso tem o poder de, ao se lembrar e recordar,
inventar tudo de novo."
O ser humano já nasce com saudade. Pois se afasta do ninho cálido onde esteve durante nove meses, o lugar seguro e protetor, no qual foi cuidado e amado.
Cadê a união que lhe parecia eterna com a cuidadora? Cadê o mundo somente seu, o útero materno? Basta sair e a saudade o acompanhará. Para sempre. Outros dizem ser, a saudade do homem, a memória ancestral do Paraíso Perdido. Que tolice foi a de perder o Éden, a troco de quê? Por isso, toda a saudade traz ressaibos de um amargor agridoce. Só se tem saudade daquilo ou daqueles que foram bons, do bem, de momentos ou tempos ou lugares agradáveis, prazerosos. Por isso, a definição — atribuída a Ruy Barbosa — de que “saudade é a vontade de outra vez”. De, pelo menos, mais uma vez. De rever alguém, de reviver algo, de recuperar talvez um elo perdido. Ou de, até mesmo, tentar descobrir se aquele encantamento foi um belo sonho ou se realmente existiu.
Já se nasce, pois, com saudade. E o homem se constrói, ao longo da vida, como um ser saudoso. As crianças são saudosas e nos emocionam quando elas próprias o confessam. De uma amiga muito querida, recebi o relato de um episódio comovente, ela e o neto. Lá se pôs a avó — embevecida com o garoto de oito anos que a visitava — a acarinhá-lo, a lhe fazer agrados. E lhe propôs cantarem juntos algumas musiquinhas de anos anteriores. E cantarolou: “Boi, boi, boi/ boi da cara preta/ pega o G... que tem medo de careta”.
O netinho, porém, a interrompeu, com olhar distante: “Vó, essa não. Essa música me deixa triste.” Minha amiga, a avó, estranhou e lhe perguntou o porquê da tristeza se, antes, ele tanto gostava da cantiga. E o menino respondeu: “É porque você cantava para mim quando eu era pequenino. Me dá saudade. Eu cresci, né, vovó?” Lá estava, pois, outro pequenino ser humano já sendo construído pelos fios invisíveis da saudade.
Infelizmente, confunde-se saudade com saudosismo, e o saudoso com o saudosista. Saudosismo e saudosistas estão fixos no passado e em realidades que não mais são aceitas. Querem presentificar o passado, torná-lo real. E isso nasce de uma filosofia de origem portuguesa — com esse mesmo nome, Saudosismo — que pretendia reconstruir Portugal a partir do passado, a que deram o nome de “saudade revelada”. O movimento elevava essa saudade à altura de uma religião, de uma filosofia, de uma política. E, com isso, buscava criar uma alma nacional portuguesa. Seria um “Sebastianismo Esclarecido”, relevado e cantado por poetas e filósofos. Até o imortal Fernando Pessoa chegou a fazer parte desse movimento. Mas o Saudosismo morreu exatamente por ser saudosista. E lá me pergunto eu: a melancólica alma portuguesa — que forma também a nossa — é saudosa ou saudosista?
Já se nasce, pois, com saudade. E o homem se constrói, ao longo da vida, como um ser saudoso. As crianças são saudosas e nos emocionam quando elas próprias o confessam. De uma amiga muito querida, recebi o relato de um episódio comovente, ela e o neto. Lá se pôs a avó — embevecida com o garoto de oito anos que a visitava — a acarinhá-lo, a lhe fazer agrados. E lhe propôs cantarem juntos algumas musiquinhas de anos anteriores. E cantarolou: “Boi, boi, boi/ boi da cara preta/ pega o G... que tem medo de careta”.
O netinho, porém, a interrompeu, com olhar distante: “Vó, essa não. Essa música me deixa triste.” Minha amiga, a avó, estranhou e lhe perguntou o porquê da tristeza se, antes, ele tanto gostava da cantiga. E o menino respondeu: “É porque você cantava para mim quando eu era pequenino. Me dá saudade. Eu cresci, né, vovó?” Lá estava, pois, outro pequenino ser humano já sendo construído pelos fios invisíveis da saudade.
Infelizmente, confunde-se saudade com saudosismo, e o saudoso com o saudosista. Saudosismo e saudosistas estão fixos no passado e em realidades que não mais são aceitas. Querem presentificar o passado, torná-lo real. E isso nasce de uma filosofia de origem portuguesa — com esse mesmo nome, Saudosismo — que pretendia reconstruir Portugal a partir do passado, a que deram o nome de “saudade revelada”. O movimento elevava essa saudade à altura de uma religião, de uma filosofia, de uma política. E, com isso, buscava criar uma alma nacional portuguesa. Seria um “Sebastianismo Esclarecido”, relevado e cantado por poetas e filósofos. Até o imortal Fernando Pessoa chegou a fazer parte desse movimento. Mas o Saudosismo morreu exatamente por ser saudosista. E lá me pergunto eu: a melancólica alma portuguesa — que forma também a nossa — é saudosa ou saudosista?
Não acredito em pessoas que dizem não ter saudade de algo ou de alguém. Não creio nos que negam ser saudosos nem que seja daquilo que não conseguem explicar. Ou mentem se o afirmam, ou mentem para si mesmos. A saudade, parece-me, é um universo espiritual concentrando o bom e o belo da vida que trazemos conosco. A saudade é nossa própria história, nas páginas mais belas, generosas e cândidas. E, estranhamente, é feita de uma tristeza suave que — muitas vezes, doendo — faz reviver. É como chorar sorrindo. Ou derramar lágrimas para bebê-las como se fossem gotas de mel. Saudade são lembranças guardadas no coração, mesmo que esquecidas pela mente.
O saudosismo, no entanto, está apenas na razão. Algo pétreo, paralisante, como se o homem fosse senhor do tempo e pudesse detê-lo ou avançá-lo. Ou mantê-lo inalterável. O saudosista tem alma fechada, como se o medo ou a covardia o impedissem de viver a grande aventura de viajar através do tempo. O saudosista permanece, fica. O saudoso, por sua vez, voa, vai e volta, traz e devolve, revive como se estivesse vivendo pela primeira vez. O saudoso tem o poder de, ao se lembrar e recordar, inventar tudo de novo. E fazer com que o agora se torne vivo como o passado. Ao passo que o saudosista quer dar vida ao passado recusando o agora.
De minha parte, assumo, com alegria, minha condição humana de saudoso. Sou feito de toda a saudade que me acompanha. E é essa saudade que me ajuda a enxergar a beleza do agora e a ter esperança no amanhã. Tenho saudade imensa de quando, num banco de jardim, toquei nas mãos da primeira namorada. E essa saudade me permite, ainda agora, tocar com emoção as mãos de minha mulher. Ela não é a primeira. Mas sei que será a última. Posso viver o encantamento disso por tê-lo vivido anteriormente. A beleza do antes ressurge agora. Saudade, pois, é como primavera que, a cada retorno, é sempre original em seu esplendor.
O saudosista quer viver do passado. O saudoso faz, do passado, fonte de vida.
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* Cecílio Elias Netto, nasceu em 24 de junho de 1940, é jornalista e escritor. Com dezoito anos já estudava alemão, francês, inglês, espanhol e italiano, sempre visando a diplomacia que exigia um grande domínio de línguas estrangeiras. Mesmo estudando para direito, o trabalho como jornalista começou cedo, aos 16 anos, como auxiliar de revisor no “Jornal de Piracicaba”. É autor do livro 'Arco, Tarco, Verva', volume 1 e 2.
Fonte: Correio Popular
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