Por fim, a superfície das superfícies, a leveza das levezas: o erotismo. Toda a revolução sexual até agora foi apenas um ensaio para as explosões sexuais e desinibidoras das massas silenciosas que estão por vir.
Tudo o que é sólido desmancha no ar. Essa máxima, que na verdade é de Marx, deu título à conhecida obra de Marshall Berman que causou frisson nos anos 1990 entre estudiosos da pós-modernidade. Creio que essa frase continue sendo a chave para compreendermos o mundo atual e um futuro que se insinua sibilino. Cada vez mais a liquidez, com e sem trocadilhos, assume o centro de nossa vida. Nessa mesma chave de análise, o sociólogo Zygmunt Bauman se tornou célebre com sua teoria do "amor líquido". Nem sequer nossas relações amorosas se sustentam em bases sólidas.
Peter Sloterdijk, um dos maiores pensadores atuais, dedica o terceiro volume de seu monumental projeto Esferas a uma análise da modernidade a partir da imagem das espumas. Seu signo é bem delimitado: o ar. A arquitetura, o urbanismo, as artes plásticas vivem a constante busca de uma espécie de éter ou de pleroma pós-metafísico. Não se baseia em outra percepção o conceito de hipermodernidade cunhado por Gilles Lipovetsky. Impermanência. Leveza. Transitoriedade. Superfície. A moda assumiu o lugar da modernidade.
Em suas seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino define os valores que determinarão a literatura do futuro. Entre eles, um se destaca: leveza. E são muitos os mestres da leveza. Embora façamos uma associação imediata entre superfície e modernidade, a superficialidade é um patrimônio da arte humana. Um bem de primeira necessidade.
Ao contrário do que se crê, a grande literatura sempre foi o reino da leveza. Nas "Metamorfoses" de Ovídio, segundo Ezra Pound um verdadeiro cinema da Antiguidade, visualizamos a transformação veloz dos deuses em animais, humanos, vegetais e outros seres, imersos em um puro devir. Cândido e Pangloss são estilingados a todas as regiões do planeta entre uma página e outra.
A comédia e a sátira são modalidades de olhar superficial sobre a vida, dos quais Rabelais e Cervantes são mestres. Foi a leveza da prosa realista de Apuleio que criou o romance antigo, nos primeiros séculos da era cristã. As melhores páginas de Ariosto não passam de uma leve e maravilhosa bufonaria. Leveza da "Flora" de Arcimboldo. Leveza dos "clusters" de Paganini. Leveza das folhas de Matisse. Leveza de Calder. Leveza da poesia renascentista. Leveza de Marina Abramovic. Leveza de Pina Bausch. A grande leveza causa vertigem. A superficialidade eficaz põe em risco a estabilidade de nossa vida.
A poesia e a pintura orientais também são verdadeiros testamentos desse mundo flutuante. As pinturas das dinastias Ming e Tang. As gravuras japonesas do século XVII. O homem é um nenúfar entre a Terra e o Céu. E aqui penso também em um haicai magistral de Bashô. O poeta visualiza do alto de uma montanha a praia coberta por uma pátina brilhante prateada. Curioso, desce até o mar. Encontra a areia completamente forrada de peixes pequeninos. São milhares de vidas em agonia. Mas seu movimento conjunto, a distância, cria o efeito sublime de uma enorme e levíssima película que espelha o sol. Transitoriedade. Leveza. Superfície. Impermanência. Não são outros os temas de toda arte e literatura taoistas produzida em 2.500 anos.
Proximidade e distância também guardam uma curiosa relação com profundidade e leveza. O poeta latino Horácio ensina que é preciso considerar as coisas em três perspectivas: de perto e de longe, uma vez e muitas vezes, no claro e no escuro. O jogo e o embaralhamento dessas categorias foram o alimento cotidiano das técnicas de ilusionismo que atravessam a arte do Ocidente.
Ludismo do poema-ovo de Símias de Rodes e da poesia visual da "technopaegnia" antiga. Sofisticada filosofia do espelhamento infinito e crise da representação das meninas de Velázquez. Como Ernst Gombrich demonstrou em seus estudos clássicos sobre arte e ilusão e sobre a arte decorativa, o peso da leveza e a verdade do fingimento são muito mais decisivos para a arte do que supomos.
A antiga técnica da "skenographia", descrita já por Aristóteles na "Poética" e aplicada durante séculos em teatros e igrejas, nada mais é do que uma mise-en-scène que torna a cabeça distante deformada em uma cabeça próxima harmônica. Trata-se de uma pedagogia de uso ilusionista dos espaços e das formas. Transformou-se na cenografia no sentido atual. Migrou para os efeitos especiais do cinema hollywoodiano.
Geralmente pensamos a Renascença como uma conquista da profundidade por meio da perspectiva. Entretanto, o tratadista florentino Leon Battista Alberti, primeiro a teorizar o chamado "ponto cêntrico", no "De Pictura", em 1435, chama a atenção para um fato curioso. Ao compor a ilusão de profundidade, não é apenas a profundidade da pintura que se torna ilusória. É a própria tela que se transforma em uma janela invisível por meio da qual vemos o mundo.
A superfície material da obra simula uma profundidade inexistente. O próprio suporte-tela evanesce. Desaparece. Incipiente em Cimabue, Giotto e Lorenzetti, francamente programático em Dürer, Michelangelo e Leonardo, é com esse ato de leveza que tem início a grande aventura da perspectiva e da pintura figurativa até os dias de hoje.
Se observarmos ao redor, a maior parte de nossa vida está emaranhada nas teias de coisas e seres nascidos dessa conversão à leveza que chamamos de modernidade. Paradoxalmente, a modernidade é um aprofundamento da leveza. Uma transformação da exceção em regra. Da periferia em centro. Uma proliferação infinita do trivial, do supérfluo, do desnecessário. Quem não percebeu a importância incomensurável da superficialidade não compreendeu em profundidade o nosso tempo.
Observem como todo pedante se apoia em algum tipo de profundidade. Notem o peso da sabedoria em suas rugas. Claro. É assim que ele legitima sua insignificância e se separa do vulgo, demarcando sua condição de classe, por mais progressista que ele se julgue. Apenas pessoas superficiais fazem a apologia do profundo. Apenas os ressentidos trabalham para manter uma áurea de beleza no sofrimento. A leveza é o peso e o pesadelo daqueles "espíritos de gravidade" de que fala Nietzsche.
Foi-se o tempo do descomunal, do existencialismo, da angústia em busca de sentido, do "horror vacui" deixado pela morte de Deus. Deus, sentido, mundo, ser, necessidade, substância. Como diz Sloterdijk, as grandes questões da filosofia se revelaram uma longa e entediante conversa fiada para o entretenimento de clérigos e sociólogos.
Nossas dúvidas metafísicas cintilaram em toda a sua vacuidade. Tornaram-se banais. Banal também se tornou o próprio mal, como intuiu profunda e profeticamente Hannah Arendt. Finalmente reconhecemos que nossos abismos interiores nascem de perguntas mal formuladas e de respostas mal respondidas. Mistificações ilusórias de um devaneio narcisista.
Os decálogos morais e as grandes questões das religiões de salvação assumiram a aparência de hesitações desprezíveis daquele nosso "mínimo eu" a que se refere o teórico do contemporâneo Christopher Lasch. Quem garante que essa não seja sua face verdadeira? A processão do Espírito do mundo se realiza nas páginas dos jornais, diria ironicamente Hegel.
Do efeito mágico de uma crônica de jornal a toda a fauna e a flora de nossos objetos cotidianos, o objetivo talvez seja apenas atingir uma forma qualquer de leveza essencial. Dos talheres de Philippe Starck aos enfeites das lojinhas de R$ 1,99, a diferença é de grau, não de natureza. Apenas a impermanência parece dizer algo de fato decisivo sobre a volatilidade de nossas vidas.
As mãos invisíveis do mercado descritas por Adam Smith são uma profecia museológica. Um bidê à Luis XIV. Não são apenas as mãos. O corpo todo do mundo e do real é que se torna invisível, evapora e se volatiliza. Se alguém quiser de fato compreender o tempo em que vivemos, não deve partir de teorias da alienação e da mais-valia ou de clichês sobre a exploração humana. Tampouco conseguirá discernir as formas de escravidão de nosso tempo a partir de análises sociológicas das relações de trabalho.
Quem quiser de fato entender como o capital imaterial se apodera de nossas vidas precisa analisar qual é a relação que estabelecemos cotidianamente com o invisível e a superficialidade. O sociólogo Jeremy Rifkin tem uma polêmica tese positiva sobre o fim do trabalho. Igualmente polêmica, bucólica e convidativa é a tese de Domenico De Masi sobre a sociedade do ócio criativo. É preciso reconhecer o valor ainda que parcial dessas propostas.
Quanto mais a realidade se torna evanescente, mais ela pesa suas asas sujas e translúcidas sobre nossos ombros. Em termos dialéticos, quanto mais intangíveis se tornam os corpos e as mercadorias, maior a violência expropriadora de seus simulacros. Mas no atual estágio do capitalismo e nas "sociedades de paredes finas" em que vivemos, querer reter nas mãos a realidade inaparente e afirmar uma essência imutável é criar para si uma variante sublime da loucura ou duplicar o próprio princípio da alienação. Ou seja: morrer em nome de uma profundidade que inexiste e viver em uma leveza fracassada.
Como dizia o poeta Paul Valéry, não há nada mais profundo do que a pele. Se Deus existe, ele tem o peso das sonatas para piano de Mozart. Tem a leveza de cada linha de Voltaire. A leveza de Kazuo Ohno. A profundidade é a última mitologia romântica que restou em meio aos destroços do mundo burguês. Apenas a afirmação da superficialidade nos salvará do abismo imaterial que nos espreita a cada esquina.
Por fim, a superfície das superfícies, a leveza das levezas: o erotismo. Toda a revolução sexual até agora foi apenas um ensaio para as explosões sexuais e desinibidoras das massas silenciosas que estão por vir. Querer detê-las, criticá-las e domesticá-las por meio de expedientes dialéticos ou morais será a missão antecipadamente frustrada dos ateus de batina do futuro.
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* Rodrigo Petronio é escritor e filósofo. Autor, editor e organizador de dezenas de obras. Autor dos livros "Pedra de Luz" (poemas, 2005), "Venho de um País Selvagem" (poemas, 2009), entre outrosFonte: Valor Econômico on line, 30/08/2013
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