domingo, 11 de agosto de 2013

" Manual de antropofagia I


Rubem Alves*
“Como desejarias renascer sem antes te tornares cinzas? Somente onde há sepulturas
há também ressurreições".
(Nietzsche)

Para que os mortos ressuscitem
Os Ianomâmi são índios que habitam as florestas da Amazônia. Dentre os costumes peculiares da sua cultura estão os rituais antropofágicos: eles devoram os seus mortos.

Os Ianomâmi explicam. “Vocês, que se dizem civilizados, odeiam os seus mortos... O que vocês querem é livrar-se deles. Por isso os enterram em covas profundas, para ficarem longe dos seus narizes e dos seus olhos, e para serem comidos pelos vermes. Mas nós amamos os nossos mortos. Não queremos que estejam mortos. Por isso os devoramos: para que ressuscitem de sua morte e continuem a viver no nosso sangue e na nossa carne.
Para os Ianomâmi, a antropofagia é um festival mágico cujo objetivo é fazer com que os amados-mortos voltem a viver no corpo daqueles que os devoraram. Como se o corpo fosse um cemitério-jardim onde os mortos são sementes.

Os cristãos têm um ritual semelhante: comem a carne e bebem o sangue de um morto para que o morto continue a viver e eles vivam pelo poder do morto “Na verdade eu lhes digo que a menos que vocês comam a carne do Filho do Homem e bebam do seu sangue vocês não poderão ter vida em si mesmos. Minha carne é comida de verdade e o meu sangue é bebida de verdade. Quem come a minha carne e bebe do meu sangue mora constantemente em mim e eu nele...” (João 6.53-56)

Murilo Mendes, no seu livrinho A Idade do Serrote, escreveu o seguinte:
“No tempo em que eu não era antropófago,
isto é, no tempo em que eu não devorava livros –
e os livros não são homens?
Não contém a substância,
o próprio sangue do homem?” (A Idade do Serrote, 9).

Feitiço. O feiticeiro fala e a palavra toca a coisa material, que é magicamente transformada, tornando-se aquilo que símbolo diz.

No trânsito entre o escritor, o livro e o leitor, acontece aquilo a que os teólogos medievais davam o nome de “transubstanciação”: transformação da substância. O pão e o vinho, tocados pela palavra, deixam de ser pão e vinho e tornam-se a substância que as palavras dizem. E o verbo se faz carne.

Escrevo antropofagicamente. O que aqui escrevo são pedaços de mim que ofereço para serem comidos. Se eu for devorado eu continuarei a viver, mesmo depois de morto. Como no mito da Fênix: incendiada, transformada em cinzas, renasce cem anos depois.”
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* Escritor. Educador.
Fonte: Correio Popular, 09/08/2013

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