O lado avesso me fascina', diz a escritora sobre a escolha dos temas de seus livros
Ao longo de uma carreira que já soma cinco décadas, foram várias as reinvenções de Lya Luft. De poeta e autora de crônicas que ela mesma considera ingênuas hoje, passou a romancista conceituada com a publicação de As Parceiras, em 1980, seguida de uma produção romanesca intensa e prolífica. Depois de uma série de dificuldades pessoais que a afastaram por um tempo da escrita, ela novamente se reinventou no alvorecer do século 21, desta vez como ensaísta best-seller após a publicação de Perdas & Ganhos. E finalmente deixou aflorar um lado mais brincalhão e menos trágico em histórias voltadas para crianças – escritas para suas netas. Em sua casa, em Porto Alegre, Lya falou ao Cultura nesta que é a quinta entrevista da série Obra Completa, que vem publicando mensalmente entrevistas críticas com grandes autores do Estado.
Cultura – A carreira da senhora começa com a publicação de um livro de poesia. Quando passa a se dedicar à prosa, publica um livro de crônicas e, só mais tarde, dedica-se ao romance, forma predominante em sua carreira. A senhora está testando seu fôlego narrativo?Lya Luft – Sempre quis escrever histórias. Era muito meninota, em Santa Cruz do Sul, e traduzia os livros infantis que lia em alemão. Sempre inventei histórias, mas nunca achei que seria escritora. Queria entender o mundo e achava que as respostas estavam nos livros. Então, eu lia feito louca. Fiz uma faculdade, fiz outra, aprendi que as respostas não estão em lugar nenhum. Depois, uma amiga me disse “Escuta, tem um concurso do IEL, manda tuas poesias”. Mandei, ganhei o prêmio, e o livro demorou a ser editado, saiu só em 1964. Comecei a trabalhar como tradutora quando a Editora Globo ainda fazia aquelas grandes coisas. Continuei trabalhando com isso, chamada por outras editoras, e fazendo poesia. E aí me deram uma coluna no Correio do Povo, que se chamava Poliedro, acho. Lendo essas crônicas muito mais tarde, achei tudo muito besta, muito cor-de-rosa, “ai, minha família”, “a lua”, coisa muito leve. E continuei a fazer poesia. Depois, o Leopoldo Boeck, da Sulina, fez uma coleção chamada Poetas Hoje, tinha livro do Carlos Nejar, Itálico Marcon. Aí, juntei uns poemas e saiu o Flauta Doce.
Cultura – E em que momento a senhora chega à prosa de ficção?Lya – A Lygia Fagundes Telles, sobre cujo romance As Meninas fiz mestrado de Literatura Brasileira, ficou minha amiga. Acho que As Meninas é um dos grandes romances brasileiros esquecidos, aquela linguagem dela... E um dia ela me disse: “Lya, você devia escrever prosa”. Aí, resolvi escrever o que achei que era uma novelinha, um pequeno romance que chamei O Túnel, um título bem besta e que era algo muito no estilo da prosa poética. Mostrei para um escritor que eu admirava muito, ele leu e disse: “Olha, Lya, está muito bonito, tu escreves muito bem, mas isto aqui não é ficção, não acontece nada”. Botei fora. Uma pena, hoje eu gostaria de dar uma olhada. Eu devia ter uns 27 anos. Aí, resolvi escrever contos, porque achava que tinha pouco fôlego. Sou prolixa para falar, mas lacônica para escrever. Já estava traduzindo para a Nova Fronteira, então mandei para o Pedro Paulo Sena Madureira, que era o grande editor naquela época. E ele, depois de uns dias, telefonou-me e disse: “Lya Luft, seus contos são todos publicáveis, eu posso publicar”. Aí eu disse: “Mas não quero ser ‘publicável’, se é só isso, não publique”. E ele me respondeu: “Mas você é romancista, todos os contos são romances abortados. Sente e escreva um romance”.
Cultura – E de onde vinha a impressão de que sua prosa tinha fôlego curto?Lya – Eu era muito tímida intelectualmente. Casei-me com o Celso Pedro Luft – eu tinha 24 anos, e ele, 42 e já era uma sumidade. E, de repente, os meus amigos eram Guilhermino César, Maurício Rosenblatt, Erico Verissimo... Saltei uma geração, então ficava quietinha escutando. Nesse meio-tempo, já lecionava, era professora de Linguística, mas não era minha vocação. Depois, tive um problema, um acidente, comoção cerebral. Fiquei gaga, desmemoriada durante um ano. Pedi demissão da faculdade e pensei: por que não escrevo de uma vez um romance? Se ninguém quiser editar, não se perde nada. Sentei e escrevi As Parceiras. Quando terminei, resolvi mostrar para o Celso, meu marido, meu mestre. Ele pegou, foi ler na varanda. E quando ele terminou, me entregou e disse: “Tá muito bom...”. Aí, mandei o romance para o Pedro Paulo Madureira por meio de uma escritora, Rachel Jardim, que era filiada àquele memorialismo mineiro bonito, A Cristaleira Invisível... Ela pôs o livro na mesa do Pedro Paulo, e ele me ligou dizendo: “Lya Luft, quero publicar esse romance e todos os que você escrever”. Saiu o livro no começo de 1980 e, de repente, eu era uma romancista. Comecei a escrever um livro atrás do outro, porque abriu aquela porta e veio uma enxurrada que estava reprimida. Eu escrevia, escrevia, escrevia, lançava um livro por ano.
Cultura – Em As Parceiras, estabelece-se uma visão que vai acompanhar toda a sua obra, a da família como um núcleo não de proteção, mas de opressão. Qual a origem dessa concepção?
Lya – É engraçado, porque as pessoas que leram As Parceiras e A Asa Esquerda do Anjo comentavam: “Coitada da Lya, deve ter tido uma infância muito infeliz, que desgraça”. E aí vai algo dos meus dois mundos, é algo que digo sempre: “Tenho um olho alegre que vive e um olho triste que escreve”. Na minha vida pessoal, não sou uma pessoa dramática. Mas tenho dentro de mim uma visão muito triste do drama existencial humano. Tive uma vida muito legal, uma infância protegida, pai, mãe, irmão pequeno, casa boa, vida no interior, brincando na calçada. Mas acho que a gente já nasce feito. Eu era muito observadora, e percebia: “Ah, aquela tia não gosta daquela avó...”. Esse mundo me fascinava, até hoje ainda me fascina. Porque eu fui infeliz? Não. Mas eu era uma criança que tinha muito medo, provavelmente porque tinha muita imaginação. Tinha medo do escuro, do fundo do corredor, de algumas casas... No romance Reunião de Família, usei uma epígrafe do Miguel Torga: “Sinto medo do avesso”. É o lado avesso da vida que me fascina. Nunca vou escrever um romance alegre. Até escrevi coisas divertidas, os livros das bruxas são meu lado gaiato, mas são para crianças.
Cultura – Essa imagem do “lado avesso” é recorrente em sua obra. No próprio Reunião de Família, a construção ficcional mostra que os personagens vão revelando seus “outros lados”. A senhora também escreveu um livro de poemas chamado O Lado Fatal. O objetivo é tentar expressar uma visão do ser humano como um ente compartimentado?
Lya – Acho que sim. Somos muito ambíguos, e nossa vida é toda muito ambígua. Sou uma pessoa extremamente ligada à família. É uma coisa de que eu preciso muito. Mas, por outro lado, sei que a maior parte das vidas das famílias é muito complicada. Vivo muito a ambiguidade. Minha mãe dizia: “A Lya está sempre no mundo da lua”. São meus dois lados. O lado do mundo da lua escreve.
Cultura – As Parceiras também inaugura um procedimento que a senhora repete ao longo da sua obra: é a memória do personagem que constrói o romance. A senhora falou há pouco do acidente que a deixou desmemoriada. Isso talvez explique um pouco esse uso da memória em sua ficção?
Lya – Nunca pensei nisso, mas é possível. Neste novo livro que está em progresso, digo que o tempo corrói tudo, mas a memória é a guardiã da vida. Dou muito valor à memória, mas não sou uma pessoa saudosista. A infância era boa, mas era muito chata, todo mundo mandava em mim.
Cultura – A Asa Esquerda do Anjo se estrutura em torno do embate entre a matriarca Frau Wolf e sua nora brasileira. É uma representação da resistência da cultura germânica a ser assimilada na experiência da imigração?
Lya – O pessoal de Santa Cruz ficou muito chateado comigo na época, acharam que eu estava tentando retratar a vida das famílias de lá, o que é uma besteirada. Claro que sempre há a figura de velhas avós, tinha uma avó matriarca, mas ela não era a Frau Wolf, a frau Wolf é um monstro. Eu não tive uma prima linda que tocava violoncelo. A minha ficção não é uma coisa tão simples que eu pegue fulano, fulano e fulano e bote num livro. Mas sempre fui rebelde. Se me dissessem que não podia passar dali, era dali que eu ia passar. Achava muito chata aquela rigidez. Com uma das minhas avós, eu tinha que falar só em alemão quando pequena, porque ela achava que português era um idioma de pessoas inferiores, e eu achava aquilo horrível. E aquelas velhas primas, porque em cidade do interior todo mundo é primo, falavam: “Nós, os alemães, e eles, os brasileiros”. E eu dizia: “Não, eu sou brasileira, eu nasci aqui”. Meus avós nem conheceram a Alemanha. Fui conhecer com mais de 40 anos... Na minha casa, não havia essas duas divisões fortes na região naquela época: os protestantes e os católicos, os brasileiros e os alemães. Isso era também uma ficção. Então, coloquei nesse livro como um símbolo de isolamento, de solidão, de rigidez, essa questão da educação. Que foi em parte a minha educação, não com aquele exagero que pus no livro, mas que era: “senta direito”, “faz isso”, não faz aquilo”, “não te queixa”. Então, nesse romance acho que coloquei a minha rebeldia contra isso.
Cultura – Em Reunião de Família, o pai reúne uma série de imagens de autoridade. É uma forma de concentrar esse questionamento à autoridade que a senhora comentou há pouco?
Lya – Acho que sempre fui contra a autoridade, sempre fui anárquica. Não desses que andam por aí de máscara preta quebrando os troços. Sempre fui muito rebelde, e a minha rebeldia era das pequenas coisas: por que tenho que dormir às sete e meia, por que não pode comer tal coisa? E a minha mãe dizia: “Criança não pensa, criança não tem querer, quem manda é o adulto”. Todos os meus livros são rebeldia contra a autoridade e contra a morte.
Cultura – Até A Sentinela, os homens em sua ficção são encarnações da autoridade patriarcal, tirânica e severa. Nesse livro, o pai Mateus é uma figura mais doce e dominada pela mulher exigente. Qual a origem dessa mudança de representação?Lya – Nunca havia pensado nisso, mas é verdade. A única coisa de que me dei conta é que a personagem principal, a Nora, que foi submetida a várias fatalidades, coisas de tragédia grega, como em geral em todos os meus romances, é a minha única personagem até ali que ensaia uma volta por cima, inclusive na aceitação do filho homossexual. Essa coisa da figura masculina diferente, eu não havia percebido antes. Na verdade, a minha visão do masculino, e por isso algumas amigas mais feministas implicam comigo, é muito positiva. Meu pai foi uma influência muito positiva em minha vida. Ele era um homem muito autoritário, mas, ao mesmo tempo, muito liberal. Foi ele que me formou. E tenho dois filhos homens. E estou no terceiro casamento, e nunca tive na minha vida o homem boçal, o homem autoritário que te cobra e quer te podar. Meus três maridos sempre foram pessoas que me empurraram para frente e para cima. Mas vejo muita coisa, não escrevo sobre minha vida particular. Vi muitos homens autoritários, manipuladores, irônicos, críticos. E também muita mulher chata, que cobra, que corrói... A relação humana é muito difícil.
Cultura – Em vários de seus livros, repete-se o mote do jogo infantil, uma brincadeira de criança que tem como origem um elemento sombrio e profético. Em Reunião de Família, é o “jogo do espelho”, uma brincadeira de derrisão da identidade. Em O Quarto Fechado, há o “jogo da morte”, em que a protagonista finge que está morta. As brincadeiras em seus livros encenam os terrores da vida?
Lya – Acho que sim, que os jogos de infância são muito simbólicos. Eu me fingia de cega quando era criança, andava dentro de casa de olhos fechados. Acredito que muitos jogos infantis (que eu não sei se ainda se fazem tantos), as canções, os contos clássicos, que eram tradição oral antes de os Irmãos Grimm e do Andersen transformarem em histórias, são todos altamente psicológicos. A criança encena em seus brinquedos, é tudo muito adulto.
Cultura – Isso explica por que, em algumas de suas histórias narradas por crianças, a voz narrativa é madura?
Lya – Um dos meus livros de que eu mais gosto, que fiquei muito tempo querendo escrever e demorei para começar, é O Ponto Cego. Queria escrever a história das famílias desgraçadas pelo ponto de vista de uma criança. Mas não achava o tom. Não queria escrever com a linguagem de uma criança. Como a literatura me dá liberdade, acabei usando uma criança com linguagem adulta. Gosto muito do pobrezinho daquele menino, que quis enganar o tempo, e o tempo lhe passou uma rasteira. Sempre tem a criança, mas não só uma criança. Também porque, em O Ponto Cego, ele é um pequeno adulto. Quando comecei a escrever esse livro, falei com a minha filha, Susana, que é médica pediatra: “Sabe que eu estou escrevendo um livro com um menino, uma criança, e que, de repente, o organismo dele acelera e ele fica velhinho em poucos anos...”. E ela me disse: “Mãe, isso existe, é uma doença chamada progéria”.
Cultura – Sua obra inicial enfoca a mulher perplexa em se perceber como o “outro” na sociedade patriarcal. Nesse sentido, seus livros são feministas?
Lya – O termo está um pouco desgastado, não? Se ser feminista é valorizar a mulher, eu nasci feminista. Mas a minha obra, meu trabalho, minhas palestras, sempre foram no sentido da dignidade. Da mulher, do homem, da criança, do negro, do branco, do amarelo, do anão, não importa. Nunca fui engajada, mas, para mim, era natural que as mulheres fossem respeitadas. Eu sabia que não eram, eu via que não eram, mas queria que fossem. Mas acho meio pobre dizer “literatura feminista”, porque isso tudo já passou. Teve uma época em que eu ia para os Estados Unidos, era convidada para aqueles congressos feministas, e achava tudo muito chato. As mulheres eram tão bravas, havia tanto ódio, tanto rancor. Até acho que tinha razão de ser, mas eu não era tão radical, também achava que os homens eram uns coitados. A vida é difícil para todo mundo. Acho a vida dos homens mais solitária do que a das mulheres. Porque as mulheres têm a amiga, a comadre, se falam, as mulheres confidenciam, há uma solidariedade no sentido emocional que não sei se os homens têm.
Cultura – Nos anos 2000, a senhora deu uma pausa na ficção longa. Publicou ensaios, poesia, crônicas, um livro de contos que sai 10 anos depois de Perdas & Ganhos. Por que esse hiato?
Lya – Não tenho a menor ideia. Se soubesse, teria escrito. O Silêncio dos Amantes acho que comecei escrevendo como um romance que virou um conto, aí fiz outros contos que talvez fossem capítulos de um romance, foi uma coisa meio confusa, isso eu me lembro. E bem depois apareceu O Tigre na Sombra, porque as histórias me aparecem. Fico muito quieta, pensando, e esse pensar, de coisas meio vagas, é como se aparecessem uns bonequinhos que eu vou pendurando no varal, e eles ficam me fazendo caretas. Aí, um deles, de repente, me fascina. Foi assim com todos os meus livros. Quando escrevi Reunião de Família, estava meio cansada de escrever em sequência dois romances de pessoas sofredoras, puxando angústias. Quis fazer uma personagem que fosse a típica pacata dona de casa, a que tem varizes, que vai na feira com a sua sacola de verduras. Só que – e a minha literatura nasce muito do “só que” e do “e se” – me perguntei: “E se essa pacata dona de casa for uma falsa pacata dona de casa, que, no fundo, tem um universo diabólico?”. E aí apareceu a Alice do Reunião de Família.
Cultura – Em sua obra não ficcional recente, como Múltipla Escolha, a senhora parece olhar em volta e alega sentir falta de uma ordem segura de valores.
Lya – Hoje está tudo muito bagunçado, e estou achando tudo muito chato. As crianças mal-educadas, os adolescentes desorientados. Acho que tem mais é que se manifestar, tem muita coisa muito ruim, se eu fosse mais moça, iria para a rua. Mas a expressão de ódio que vejo quando eles estão destruindo coisas... Isso acho meio demais. Passamos de rigidez demais para um endeusamento da juventude. Sinto falta de um meio-termo que não sei se teremos no meu tempo de vida. Podem cuspir em cima de mim, mas quem é que põe uma certa ordem? Não tem. Então, o pessoal está reclamando de coisas completamente loucas. Algumas são justas, mas outras são malucas. Sinto falta de certa ordem e não vejo uma saída tão cedo para isso.
Cultura – A carreira da senhora começa com a publicação de um livro de poesia. Quando passa a se dedicar à prosa, publica um livro de crônicas e, só mais tarde, dedica-se ao romance, forma predominante em sua carreira. A senhora está testando seu fôlego narrativo?Lya Luft – Sempre quis escrever histórias. Era muito meninota, em Santa Cruz do Sul, e traduzia os livros infantis que lia em alemão. Sempre inventei histórias, mas nunca achei que seria escritora. Queria entender o mundo e achava que as respostas estavam nos livros. Então, eu lia feito louca. Fiz uma faculdade, fiz outra, aprendi que as respostas não estão em lugar nenhum. Depois, uma amiga me disse “Escuta, tem um concurso do IEL, manda tuas poesias”. Mandei, ganhei o prêmio, e o livro demorou a ser editado, saiu só em 1964. Comecei a trabalhar como tradutora quando a Editora Globo ainda fazia aquelas grandes coisas. Continuei trabalhando com isso, chamada por outras editoras, e fazendo poesia. E aí me deram uma coluna no Correio do Povo, que se chamava Poliedro, acho. Lendo essas crônicas muito mais tarde, achei tudo muito besta, muito cor-de-rosa, “ai, minha família”, “a lua”, coisa muito leve. E continuei a fazer poesia. Depois, o Leopoldo Boeck, da Sulina, fez uma coleção chamada Poetas Hoje, tinha livro do Carlos Nejar, Itálico Marcon. Aí, juntei uns poemas e saiu o Flauta Doce.
Cultura – E em que momento a senhora chega à prosa de ficção?Lya – A Lygia Fagundes Telles, sobre cujo romance As Meninas fiz mestrado de Literatura Brasileira, ficou minha amiga. Acho que As Meninas é um dos grandes romances brasileiros esquecidos, aquela linguagem dela... E um dia ela me disse: “Lya, você devia escrever prosa”. Aí, resolvi escrever o que achei que era uma novelinha, um pequeno romance que chamei O Túnel, um título bem besta e que era algo muito no estilo da prosa poética. Mostrei para um escritor que eu admirava muito, ele leu e disse: “Olha, Lya, está muito bonito, tu escreves muito bem, mas isto aqui não é ficção, não acontece nada”. Botei fora. Uma pena, hoje eu gostaria de dar uma olhada. Eu devia ter uns 27 anos. Aí, resolvi escrever contos, porque achava que tinha pouco fôlego. Sou prolixa para falar, mas lacônica para escrever. Já estava traduzindo para a Nova Fronteira, então mandei para o Pedro Paulo Sena Madureira, que era o grande editor naquela época. E ele, depois de uns dias, telefonou-me e disse: “Lya Luft, seus contos são todos publicáveis, eu posso publicar”. Aí eu disse: “Mas não quero ser ‘publicável’, se é só isso, não publique”. E ele me respondeu: “Mas você é romancista, todos os contos são romances abortados. Sente e escreva um romance”.
Cultura – E de onde vinha a impressão de que sua prosa tinha fôlego curto?Lya – Eu era muito tímida intelectualmente. Casei-me com o Celso Pedro Luft – eu tinha 24 anos, e ele, 42 e já era uma sumidade. E, de repente, os meus amigos eram Guilhermino César, Maurício Rosenblatt, Erico Verissimo... Saltei uma geração, então ficava quietinha escutando. Nesse meio-tempo, já lecionava, era professora de Linguística, mas não era minha vocação. Depois, tive um problema, um acidente, comoção cerebral. Fiquei gaga, desmemoriada durante um ano. Pedi demissão da faculdade e pensei: por que não escrevo de uma vez um romance? Se ninguém quiser editar, não se perde nada. Sentei e escrevi As Parceiras. Quando terminei, resolvi mostrar para o Celso, meu marido, meu mestre. Ele pegou, foi ler na varanda. E quando ele terminou, me entregou e disse: “Tá muito bom...”. Aí, mandei o romance para o Pedro Paulo Madureira por meio de uma escritora, Rachel Jardim, que era filiada àquele memorialismo mineiro bonito, A Cristaleira Invisível... Ela pôs o livro na mesa do Pedro Paulo, e ele me ligou dizendo: “Lya Luft, quero publicar esse romance e todos os que você escrever”. Saiu o livro no começo de 1980 e, de repente, eu era uma romancista. Comecei a escrever um livro atrás do outro, porque abriu aquela porta e veio uma enxurrada que estava reprimida. Eu escrevia, escrevia, escrevia, lançava um livro por ano.
Cultura – Em As Parceiras, estabelece-se uma visão que vai acompanhar toda a sua obra, a da família como um núcleo não de proteção, mas de opressão. Qual a origem dessa concepção?
Lya – É engraçado, porque as pessoas que leram As Parceiras e A Asa Esquerda do Anjo comentavam: “Coitada da Lya, deve ter tido uma infância muito infeliz, que desgraça”. E aí vai algo dos meus dois mundos, é algo que digo sempre: “Tenho um olho alegre que vive e um olho triste que escreve”. Na minha vida pessoal, não sou uma pessoa dramática. Mas tenho dentro de mim uma visão muito triste do drama existencial humano. Tive uma vida muito legal, uma infância protegida, pai, mãe, irmão pequeno, casa boa, vida no interior, brincando na calçada. Mas acho que a gente já nasce feito. Eu era muito observadora, e percebia: “Ah, aquela tia não gosta daquela avó...”. Esse mundo me fascinava, até hoje ainda me fascina. Porque eu fui infeliz? Não. Mas eu era uma criança que tinha muito medo, provavelmente porque tinha muita imaginação. Tinha medo do escuro, do fundo do corredor, de algumas casas... No romance Reunião de Família, usei uma epígrafe do Miguel Torga: “Sinto medo do avesso”. É o lado avesso da vida que me fascina. Nunca vou escrever um romance alegre. Até escrevi coisas divertidas, os livros das bruxas são meu lado gaiato, mas são para crianças.
Cultura – Essa imagem do “lado avesso” é recorrente em sua obra. No próprio Reunião de Família, a construção ficcional mostra que os personagens vão revelando seus “outros lados”. A senhora também escreveu um livro de poemas chamado O Lado Fatal. O objetivo é tentar expressar uma visão do ser humano como um ente compartimentado?
Lya – Acho que sim. Somos muito ambíguos, e nossa vida é toda muito ambígua. Sou uma pessoa extremamente ligada à família. É uma coisa de que eu preciso muito. Mas, por outro lado, sei que a maior parte das vidas das famílias é muito complicada. Vivo muito a ambiguidade. Minha mãe dizia: “A Lya está sempre no mundo da lua”. São meus dois lados. O lado do mundo da lua escreve.
Cultura – As Parceiras também inaugura um procedimento que a senhora repete ao longo da sua obra: é a memória do personagem que constrói o romance. A senhora falou há pouco do acidente que a deixou desmemoriada. Isso talvez explique um pouco esse uso da memória em sua ficção?
Lya – Nunca pensei nisso, mas é possível. Neste novo livro que está em progresso, digo que o tempo corrói tudo, mas a memória é a guardiã da vida. Dou muito valor à memória, mas não sou uma pessoa saudosista. A infância era boa, mas era muito chata, todo mundo mandava em mim.
Cultura – A Asa Esquerda do Anjo se estrutura em torno do embate entre a matriarca Frau Wolf e sua nora brasileira. É uma representação da resistência da cultura germânica a ser assimilada na experiência da imigração?
Lya – O pessoal de Santa Cruz ficou muito chateado comigo na época, acharam que eu estava tentando retratar a vida das famílias de lá, o que é uma besteirada. Claro que sempre há a figura de velhas avós, tinha uma avó matriarca, mas ela não era a Frau Wolf, a frau Wolf é um monstro. Eu não tive uma prima linda que tocava violoncelo. A minha ficção não é uma coisa tão simples que eu pegue fulano, fulano e fulano e bote num livro. Mas sempre fui rebelde. Se me dissessem que não podia passar dali, era dali que eu ia passar. Achava muito chata aquela rigidez. Com uma das minhas avós, eu tinha que falar só em alemão quando pequena, porque ela achava que português era um idioma de pessoas inferiores, e eu achava aquilo horrível. E aquelas velhas primas, porque em cidade do interior todo mundo é primo, falavam: “Nós, os alemães, e eles, os brasileiros”. E eu dizia: “Não, eu sou brasileira, eu nasci aqui”. Meus avós nem conheceram a Alemanha. Fui conhecer com mais de 40 anos... Na minha casa, não havia essas duas divisões fortes na região naquela época: os protestantes e os católicos, os brasileiros e os alemães. Isso era também uma ficção. Então, coloquei nesse livro como um símbolo de isolamento, de solidão, de rigidez, essa questão da educação. Que foi em parte a minha educação, não com aquele exagero que pus no livro, mas que era: “senta direito”, “faz isso”, não faz aquilo”, “não te queixa”. Então, nesse romance acho que coloquei a minha rebeldia contra isso.
Cultura – Em Reunião de Família, o pai reúne uma série de imagens de autoridade. É uma forma de concentrar esse questionamento à autoridade que a senhora comentou há pouco?
Lya – Acho que sempre fui contra a autoridade, sempre fui anárquica. Não desses que andam por aí de máscara preta quebrando os troços. Sempre fui muito rebelde, e a minha rebeldia era das pequenas coisas: por que tenho que dormir às sete e meia, por que não pode comer tal coisa? E a minha mãe dizia: “Criança não pensa, criança não tem querer, quem manda é o adulto”. Todos os meus livros são rebeldia contra a autoridade e contra a morte.
Cultura – Até A Sentinela, os homens em sua ficção são encarnações da autoridade patriarcal, tirânica e severa. Nesse livro, o pai Mateus é uma figura mais doce e dominada pela mulher exigente. Qual a origem dessa mudança de representação?Lya – Nunca havia pensado nisso, mas é verdade. A única coisa de que me dei conta é que a personagem principal, a Nora, que foi submetida a várias fatalidades, coisas de tragédia grega, como em geral em todos os meus romances, é a minha única personagem até ali que ensaia uma volta por cima, inclusive na aceitação do filho homossexual. Essa coisa da figura masculina diferente, eu não havia percebido antes. Na verdade, a minha visão do masculino, e por isso algumas amigas mais feministas implicam comigo, é muito positiva. Meu pai foi uma influência muito positiva em minha vida. Ele era um homem muito autoritário, mas, ao mesmo tempo, muito liberal. Foi ele que me formou. E tenho dois filhos homens. E estou no terceiro casamento, e nunca tive na minha vida o homem boçal, o homem autoritário que te cobra e quer te podar. Meus três maridos sempre foram pessoas que me empurraram para frente e para cima. Mas vejo muita coisa, não escrevo sobre minha vida particular. Vi muitos homens autoritários, manipuladores, irônicos, críticos. E também muita mulher chata, que cobra, que corrói... A relação humana é muito difícil.
Cultura – Em vários de seus livros, repete-se o mote do jogo infantil, uma brincadeira de criança que tem como origem um elemento sombrio e profético. Em Reunião de Família, é o “jogo do espelho”, uma brincadeira de derrisão da identidade. Em O Quarto Fechado, há o “jogo da morte”, em que a protagonista finge que está morta. As brincadeiras em seus livros encenam os terrores da vida?
Lya – Acho que sim, que os jogos de infância são muito simbólicos. Eu me fingia de cega quando era criança, andava dentro de casa de olhos fechados. Acredito que muitos jogos infantis (que eu não sei se ainda se fazem tantos), as canções, os contos clássicos, que eram tradição oral antes de os Irmãos Grimm e do Andersen transformarem em histórias, são todos altamente psicológicos. A criança encena em seus brinquedos, é tudo muito adulto.
Cultura – Isso explica por que, em algumas de suas histórias narradas por crianças, a voz narrativa é madura?
Lya – Um dos meus livros de que eu mais gosto, que fiquei muito tempo querendo escrever e demorei para começar, é O Ponto Cego. Queria escrever a história das famílias desgraçadas pelo ponto de vista de uma criança. Mas não achava o tom. Não queria escrever com a linguagem de uma criança. Como a literatura me dá liberdade, acabei usando uma criança com linguagem adulta. Gosto muito do pobrezinho daquele menino, que quis enganar o tempo, e o tempo lhe passou uma rasteira. Sempre tem a criança, mas não só uma criança. Também porque, em O Ponto Cego, ele é um pequeno adulto. Quando comecei a escrever esse livro, falei com a minha filha, Susana, que é médica pediatra: “Sabe que eu estou escrevendo um livro com um menino, uma criança, e que, de repente, o organismo dele acelera e ele fica velhinho em poucos anos...”. E ela me disse: “Mãe, isso existe, é uma doença chamada progéria”.
Cultura – Sua obra inicial enfoca a mulher perplexa em se perceber como o “outro” na sociedade patriarcal. Nesse sentido, seus livros são feministas?
Lya – O termo está um pouco desgastado, não? Se ser feminista é valorizar a mulher, eu nasci feminista. Mas a minha obra, meu trabalho, minhas palestras, sempre foram no sentido da dignidade. Da mulher, do homem, da criança, do negro, do branco, do amarelo, do anão, não importa. Nunca fui engajada, mas, para mim, era natural que as mulheres fossem respeitadas. Eu sabia que não eram, eu via que não eram, mas queria que fossem. Mas acho meio pobre dizer “literatura feminista”, porque isso tudo já passou. Teve uma época em que eu ia para os Estados Unidos, era convidada para aqueles congressos feministas, e achava tudo muito chato. As mulheres eram tão bravas, havia tanto ódio, tanto rancor. Até acho que tinha razão de ser, mas eu não era tão radical, também achava que os homens eram uns coitados. A vida é difícil para todo mundo. Acho a vida dos homens mais solitária do que a das mulheres. Porque as mulheres têm a amiga, a comadre, se falam, as mulheres confidenciam, há uma solidariedade no sentido emocional que não sei se os homens têm.
Cultura – Nos anos 2000, a senhora deu uma pausa na ficção longa. Publicou ensaios, poesia, crônicas, um livro de contos que sai 10 anos depois de Perdas & Ganhos. Por que esse hiato?
Lya – Não tenho a menor ideia. Se soubesse, teria escrito. O Silêncio dos Amantes acho que comecei escrevendo como um romance que virou um conto, aí fiz outros contos que talvez fossem capítulos de um romance, foi uma coisa meio confusa, isso eu me lembro. E bem depois apareceu O Tigre na Sombra, porque as histórias me aparecem. Fico muito quieta, pensando, e esse pensar, de coisas meio vagas, é como se aparecessem uns bonequinhos que eu vou pendurando no varal, e eles ficam me fazendo caretas. Aí, um deles, de repente, me fascina. Foi assim com todos os meus livros. Quando escrevi Reunião de Família, estava meio cansada de escrever em sequência dois romances de pessoas sofredoras, puxando angústias. Quis fazer uma personagem que fosse a típica pacata dona de casa, a que tem varizes, que vai na feira com a sua sacola de verduras. Só que – e a minha literatura nasce muito do “só que” e do “e se” – me perguntei: “E se essa pacata dona de casa for uma falsa pacata dona de casa, que, no fundo, tem um universo diabólico?”. E aí apareceu a Alice do Reunião de Família.
Cultura – Em sua obra não ficcional recente, como Múltipla Escolha, a senhora parece olhar em volta e alega sentir falta de uma ordem segura de valores.
Lya – Hoje está tudo muito bagunçado, e estou achando tudo muito chato. As crianças mal-educadas, os adolescentes desorientados. Acho que tem mais é que se manifestar, tem muita coisa muito ruim, se eu fosse mais moça, iria para a rua. Mas a expressão de ódio que vejo quando eles estão destruindo coisas... Isso acho meio demais. Passamos de rigidez demais para um endeusamento da juventude. Sinto falta de um meio-termo que não sei se teremos no meu tempo de vida. Podem cuspir em cima de mim, mas quem é que põe uma certa ordem? Não tem. Então, o pessoal está reclamando de coisas completamente loucas. Algumas são justas, mas outras são malucas. Sinto falta de certa ordem e não vejo uma saída tão cedo para isso.
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