ALVARO VALLS*
Singer discute a consciência do dever moral de cada um para com o outro
Num congresso de bioética realizado há alguns anos em Brasília, em que depois levaram Peter Singer, vegetariano convicto (cujas ideias inspiraram o filme australiano Babe, o Porquinho Atrapalhado), a comer na churrascaria Porcão, vimos como ele aceitava de modo singelo ser fotografado junto a seus leitores de nosso continente. Minha filha bióloga, interessada em bioética, quis fotografar-nos também. Como pretexto, perguntei ao filósofo australiano se sua proposta, de que 10% do que possuímos deveria, por uma obrigação moral, ser doado a pessoas que estejam em condições econômicas mais precárias, seria mesmo de 10%, ao pé da letra. Pergunta simples e objetiva, que podia ser respondida no claro idioma alemão, que ali utilizamos. Como eu esperava, replicou que podia ser também nove ou onze por cento, pois o importante não era o número, mas o sentido de obrigação. Confirmei assim, de viva voz ou em primeira mão, uma tese tão simples quanto prenhe de consequências: se todos, ricos ou pobres, dedicassem a décima parte de suas posses aos mais necessitados, todo mundo viveria muito melhor, ninguém ficando realmente pior, pois todos manteriam seus 90%.
Acontece que nem todos compreendem esta matemática tão simples que nos levaria a ajudar os outros “without major sacrifices”, isto é, sem sacrifícios de monta. No livro Princípios de Ética Biomédica, de Beauchamp & Childress, bíblia dos Kennedianos de Georgetown, obra mestra do “principialismo”, os autores descobriram uma outra matemática, acreditando, por suas contas, que tal medida prejudicaria gravemente a alguns (os mais pobres – ou os mais ricos?), e o dizem, inclusive, após terem citado por extenso a bela parábola do Bom Samaritano! Tudo se passa como se os dois autores daquela universidade jesuíta tivessem copiado e colado a parábola sem lê-la. No livro deles, é dito com todas as letras que, se um ônibus parasse junto a um acidente de trânsito e os passageiros vissem um acidentado precisando de socorro, um médico que viajasse no coletivo não teria uma obrigação maior de ajudá-lo do que um advogado ou um estudante. À luz do contratualismo dos americanos, a obrigação médica só valeria depois de estabelecida uma relação de tipo profissional! Talvez por isso o Prof. Pellegrino, colega deles, mas com outra visão, propunha que se redefinisse o profissionalismo...
Por suas origens familiares (com três avós nos campos de concentração), Singer está vinculado a uma inspiração bíblica, e ele vê os seres humanos como iguais e companheiros de viagem. Sempre esteve menos preocupado com nossas diferenças frente aos animais não humanos, e mais com os aspectos que temos em comum, nós humanos, entre nós, e nós humanos com os não humanos, que fazem parte também de nosso mundo (ou da criação). Prefere defender a vida dos que estão a morrer de fome e querem viver, em vez de insistir numa obrigação de prolongar a vida de quem não quer mais viver, ou em vez de se por a condenar jovens que de alguma maneira são levadas, pelas misérias da vida, a abortar. Por isso tenta repensar a vida e a morte.
O que lhe interessa é a consciência de um dever moral: devemos sim, podendo, ajudar os outros. O modo e a motivação imediata não são as questões mais importantes para sua filosofia de tipo utilitarista: o resultado é o que mais interessa, um mundo melhor, com menos sofrimento. A diminuição real do sofrimento importa mais do que a pureza da intenção, ao menos numa condição de calamidade mundial como a nossa, se olhamos um pouco mais para longe. Até o papa Francisco fez um aceno nesta direção, em sua entrevista recente no Rio de Janeiro: se há crianças sem comida e sem escola, o que interessa, em primeiro lugar, é que tenham comida e tenham escola (se é dos católicos, dos evangélicos, dos judeus, isto interessa menos ao atual papa).
Mas algum leitor pode achar que um professor de Filosofia, de Ética ou de Bioética deveria manter maior distância em relação à Bíblia, ao Papa e à religião. Sem problemas: apelemos para um grande e inquestionável filósofo, apelemos para a moral kantiana! Como muitos sabem, a distância entre os utilitaristas, preocupados com o sofrimento, a felicidade e o resultado até quantitativo (“a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas”) e, por outro lado, o rigorismo da vontade boa de um Kant, é imensa. O que interessa, para Kant, é que cumpramos nosso dever, e se os resultados concretos e históricos de nossas ações bem intencionadas não dependem totalmente de nós, então não deveríamos nos preocupar com este aspecto. Kierkegaard, na mesma linha, mas radicalizando um dever de amar – que valeria para Kant só como um amor prático, não ligado a paixões –, diz até que se um ladrão roubasse do templo a esmolinha da pobre viúva, mesmo assim ela ainda teria sido a que deu mais, pois dera tudo o que tinha (talvez mais do que o dízimo defendido por Singer).
Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, nos brinda com quatro exemplos do que seriam deveres a cumprir. E o quarto trata da ajuda aos demais. Em termos puramente racionais, ele supõe que o mundo não acabaria se ninguém ajudasse ninguém, se imperasse um egoísmo do cada um por si, mas um egoísmo franco e sem hipocrisia. Só que, diz então Kant, não é possível querermos ver proibida por lei a mão estendida ao outro, pois ninguém desejaria viver num mundo assim. Ele conclui então que devemos ajudar os necessitados, se o pudermos sem sacrifícios que criassem um mal maior no mundo. É bem por aí que vai a lógica da ética de Singer. Sacrifícios precisam ser feitos, mas há que ponderá-los: conforme um exemplo seu, se um professor se dirige à escola e vê uma criança se afogando num chafariz, pode e deve ajudar, mesmo que com isso venha a molhar um pouco as suas roupas. Deixar a criança sem o auxílio provocaria um mal muito maior. Vemos que a filosofia pode ser séria e profunda sem precisar ser complicada. É outra lição que Peter Singer nos dá.-------------------
ALVARO VALLS | Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unisinos
Acontece que nem todos compreendem esta matemática tão simples que nos levaria a ajudar os outros “without major sacrifices”, isto é, sem sacrifícios de monta. No livro Princípios de Ética Biomédica, de Beauchamp & Childress, bíblia dos Kennedianos de Georgetown, obra mestra do “principialismo”, os autores descobriram uma outra matemática, acreditando, por suas contas, que tal medida prejudicaria gravemente a alguns (os mais pobres – ou os mais ricos?), e o dizem, inclusive, após terem citado por extenso a bela parábola do Bom Samaritano! Tudo se passa como se os dois autores daquela universidade jesuíta tivessem copiado e colado a parábola sem lê-la. No livro deles, é dito com todas as letras que, se um ônibus parasse junto a um acidente de trânsito e os passageiros vissem um acidentado precisando de socorro, um médico que viajasse no coletivo não teria uma obrigação maior de ajudá-lo do que um advogado ou um estudante. À luz do contratualismo dos americanos, a obrigação médica só valeria depois de estabelecida uma relação de tipo profissional! Talvez por isso o Prof. Pellegrino, colega deles, mas com outra visão, propunha que se redefinisse o profissionalismo...
Por suas origens familiares (com três avós nos campos de concentração), Singer está vinculado a uma inspiração bíblica, e ele vê os seres humanos como iguais e companheiros de viagem. Sempre esteve menos preocupado com nossas diferenças frente aos animais não humanos, e mais com os aspectos que temos em comum, nós humanos, entre nós, e nós humanos com os não humanos, que fazem parte também de nosso mundo (ou da criação). Prefere defender a vida dos que estão a morrer de fome e querem viver, em vez de insistir numa obrigação de prolongar a vida de quem não quer mais viver, ou em vez de se por a condenar jovens que de alguma maneira são levadas, pelas misérias da vida, a abortar. Por isso tenta repensar a vida e a morte.
O que lhe interessa é a consciência de um dever moral: devemos sim, podendo, ajudar os outros. O modo e a motivação imediata não são as questões mais importantes para sua filosofia de tipo utilitarista: o resultado é o que mais interessa, um mundo melhor, com menos sofrimento. A diminuição real do sofrimento importa mais do que a pureza da intenção, ao menos numa condição de calamidade mundial como a nossa, se olhamos um pouco mais para longe. Até o papa Francisco fez um aceno nesta direção, em sua entrevista recente no Rio de Janeiro: se há crianças sem comida e sem escola, o que interessa, em primeiro lugar, é que tenham comida e tenham escola (se é dos católicos, dos evangélicos, dos judeus, isto interessa menos ao atual papa).
Mas algum leitor pode achar que um professor de Filosofia, de Ética ou de Bioética deveria manter maior distância em relação à Bíblia, ao Papa e à religião. Sem problemas: apelemos para um grande e inquestionável filósofo, apelemos para a moral kantiana! Como muitos sabem, a distância entre os utilitaristas, preocupados com o sofrimento, a felicidade e o resultado até quantitativo (“a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas”) e, por outro lado, o rigorismo da vontade boa de um Kant, é imensa. O que interessa, para Kant, é que cumpramos nosso dever, e se os resultados concretos e históricos de nossas ações bem intencionadas não dependem totalmente de nós, então não deveríamos nos preocupar com este aspecto. Kierkegaard, na mesma linha, mas radicalizando um dever de amar – que valeria para Kant só como um amor prático, não ligado a paixões –, diz até que se um ladrão roubasse do templo a esmolinha da pobre viúva, mesmo assim ela ainda teria sido a que deu mais, pois dera tudo o que tinha (talvez mais do que o dízimo defendido por Singer).
Kant, na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, nos brinda com quatro exemplos do que seriam deveres a cumprir. E o quarto trata da ajuda aos demais. Em termos puramente racionais, ele supõe que o mundo não acabaria se ninguém ajudasse ninguém, se imperasse um egoísmo do cada um por si, mas um egoísmo franco e sem hipocrisia. Só que, diz então Kant, não é possível querermos ver proibida por lei a mão estendida ao outro, pois ninguém desejaria viver num mundo assim. Ele conclui então que devemos ajudar os necessitados, se o pudermos sem sacrifícios que criassem um mal maior no mundo. É bem por aí que vai a lógica da ética de Singer. Sacrifícios precisam ser feitos, mas há que ponderá-los: conforme um exemplo seu, se um professor se dirige à escola e vê uma criança se afogando num chafariz, pode e deve ajudar, mesmo que com isso venha a molhar um pouco as suas roupas. Deixar a criança sem o auxílio provocaria um mal muito maior. Vemos que a filosofia pode ser séria e profunda sem precisar ser complicada. É outra lição que Peter Singer nos dá.-------------------
ALVARO VALLS | Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unisinos
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Fonte: ZH
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