Gênios não são os que alcançam um alvo que ninguém alcançou, mas os que veem um alvo que ninguém viu, dizia Schopenhauer. Pois essa genialidade talvez não dependa de inteligências privilegiadas, e sim de mais sensibilidade e empatia, da capacidade de ouvir genuinamente. O que pode parecer fácil mas não é, pela tendência a distorcer o que o outro diz, antes de compreender seus reais sentimentos e pensamentos. De enquadrar no já sabido, reduzindo fenômenos novos a velhos conhecidos, necessidade instintiva de segurança, de saber com o que estamos lidando.
Rotulamos para evitar o desconforto do desconhecido, pois contra o conhecido já temos nossas defesas armadas. Ser empático, então, é antes de tudo ser capaz de desarmar-se, despir-se de defesas, preconceitos, ideias preconcebidas, de todos os rótulos e esquemas prévios de interpretação dos fatos. Isso é possível? Não por acaso, a empatia é a mais complexa das capacidades humanas. Não é uma mera postura de abertura intelectual, é também um estado emocional de sensibilidade à outra pessoa.
“O que há de mais íntimo e pessoal, é o que há de mais universal”, relatou um psicólogo nos anos 80, sobre as tendências de mudanças sociais e de comportamento. Em plena época do neoliberalismo triunfante, a previsão desafiava a tese do “fim da História”, de que era assim mesmo e acabou.
Ele havia detectado, no íntimo das pessoas com quem conversava, desejos de mudança de valores, de um mundo diferente. Ao ouvir anseios por mudança, podemos enquadrá-los em teorias, antes de ouvir o que as pessoas têm a dizer. Porque, se ouvirmos, temos de conviver com a insegurança de não saber como compreender, que resposta dar, como lidar com suas demandas. Foi o que aconteceu em junho com a intelectualidade pátria, em busca de uma explicação para os fenômenos das ruas. Muitas interpretações pejorativas, vendo ameaças a conquistas da sociedade, ao invés do desejo de ir além.
Quais os precedentes dos movimentos das ruas, com o que compará-los? Em Contra a Interpretação, Susan Sontag mostra como qualquer interpretação é reducionista, tenta “reduzir” o fenômeno a uma outra coisa. Mas, vamos lá, as comparações com o maio de 68 na França pareciam legítimas, pelo menos num ponto: eram manifestações contra o poder e também contra as instituições tradicionais de contestação, já envelhecidas. Comparações inevitáveis também com a primavera árabe de 2011 e o M-15 da Espanha: “Nossos sonhos não cabem nas urnas”, diziam, pois não se sentiam representados pelas forças políticas tradicionais.
Mais que comparar, cabe ouvir. O psicólogo que ouviu o “íntimo e pessoal” dissonante dos chavões dominantes nos anos 80, Carl Rogers, também comentou que a região onde trabalhava tinha tendências a antecipar o futuro, a Califórnia. Ele não estava elogiando o “american way of life” da época, ao contrário, criticava o militarismo imperialista do Bush (pai, então). Além disso, Rogers visitou a China e voltou elogiando a participação dos chineses na sua sociedade (no livro Sobre o Poder Pessoal, em que também escreveu um capítulo sobre a pedagogia de Paulo Freire), em contraste com a alienação dos americanos diante dos desmandos do poder econômico.
Não eram observações de um revolucionário, mas de um psicólogo que gostava de ouvir as pessoas. Ah, sim, os californianos têm um papel nas mudanças sociais, hoje. A tecnologia de informação do Vale do Silício, na prática, está ajudando a mudar o mundo. O íntimo e pessoal se torna cada vez mais universal – e mais rebelde do que muitos imaginavam.
*MÉDICO PSIQUIATRA
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