Baudelaire, Freud e Godard foram alguns dos pensadores que serviram de apoio às ideias do então jovem André Comte-Sponville (tinha 26 anos) em "Do Corpo". Primeiro livro do filósofo francês que hoje, aos 61 anos, enche auditórios e vende best-sellers em 20 idiomas, estava inédito no Brasil, mas acaba de sair pela Martins Fontes. Trata-se de uma espécie de coletânea de aforismos sobre temas visitados em sua carreira, como amor, sexualidade, religião e morte. "Sou como Montaigne: gosto de citações", diz ao Valor.
Desde então, algumas opiniões amadureceram, outras estão intactas, como a descrença na religião. Defensor da espiritualidade laica, encontra a definição de suas crenças na alcunha de "ateu fiel": "Vejo nas religiões apenas um conjunto de ilusões às quais não posso aderir. Falta inventar, ou reinventar, uma espiritualidade sem deus, e transmitir às crianças o que há de moralmente precioso nas grandes religiões. Defino-me como ateu porque não acredito em nenhum deus e fiel porque me mantenho apegado aos valores humanos veiculados há séculos pelas religiões".
Tal como os soldados do filme "Glória Feita de Sangue", de Stanley Kubrick, que dizem ter "mais medo da dor do que da morte", ele afirma em "Do Corpo" que a morte só é triste para os vivos, não sendo mais que a passagem de um estado a outro, em que nada se perde. "Morremos, e isso é alguma coisa. Filosofar não é aprender a morrer, ao contrário do que dizia Platão, mas aprender a viver. Isso supõe, todavia, que se aprenda a aceitar a inevitabilidade da morte, o trágico da nossa condição".
Essa não é a primeira vez que o francês se opõe ao pupilo de Sócrates. Em "O Amor" (2011), Comte-Sponville expõe a descrição do amor por Platão como algo que nos falta, impossível de reter, para em seguida contrapô-la ao afirmar a possibilidade de "haver casais felizes, adeptos do amor-ação: aquele que fazemos, que construímos e mantemos".
Comte-Sponville lamenta a relutância da comunidade acadêmica em dar a devida atenção a amor e sexo. "Eles não falam no assunto com muita frequência, mas pareceu-me útil definir a questão, o que fiz em 'Le Sexe ni la Mort' (sem tradução aqui), cujo título se refere à máxima de La Rochefoucauld: "Nem o sol nem a morte podem ser encarados fixamente". "Parece-me que há algo em comum entre o sol e o sexo: ambos nos fazem viver, aquecem, ofuscam. É o que eu quis tentar compreender."
Em relação às mudanças na experiência sexual da juventude atual, causadas pelo fácil acesso a conteúdo adulto na internet, defende um meio-termo entre pudor e pornografia: "Não tenho nenhuma nostalgia da pudicícia do século XIX, mas me aflige que um jovem descubra a sexualidade em filmes pornô, quase sempre cheios de vulgaridade, violência e misoginia. Entre o pudor e a pornografia parece-me haver lugar para imagens verdadeiras, doces, respeitosas".
Ele chama a atenção também (há 35 anos) para a baixa qualidade da arte contemporânea. "Uma vez que atinge a maturidade, a arte não avança mais. [...] A noção de vanguarda artística é vazia de sentido. O que é a vanguarda de um exército que não avança?", escreve em "Do Corpo", crítica que mantém. "Você conhece um músico atualmente que se iguale a Bach ou Beethoven; um pintor que se iguale a Vermeer ou Ticiano? Eu não conheço. Acredite que lamento!"
O filósofo critica também as celebridades do meio artístico - segundo ele, superestimadas ou desprezíveis: "Para ser moderno será preciso considerar Jeff Koons ou [Daniel] Buren gênios? Prefiro passar por medíocre a fazer de conta que admiro o que a mídia e a burguesia incensam", protesta. "Não devemos nos resignar à decadência, mas vislumbrar a aurora, preparar um renascimento. Sim, hoje precisamos de um Giotto, um Shakespeare, um Bach: eu os aguardo e tento preparar o terreno para eles."
A política também parece precisar de terraplenagem a seus olhos. Enquanto vê com entusiasmo os jovens se preocuparem com o tema, é cético em relação a mudanças palpáveis. "Não podemos nos ater a simples protestos, é preciso também conquistar os meios de transformar a sociedade. O entusiasmo da juventude é uma grande força, mas não pode substituir a lucidez", diz, tomando Maio de 68 como exemplo: "Muito entusiasmo, decerto, mas também muitas ilusões, utopia, ingenuidade... A esquerda precisa conciliar sonho e lucidez, entusiasmo e eficácia, generosidade e realismo. Não é fácil, mas é mais uma razão para lhe dedicar nossos esforços".
Comte-Sponville afirma querer a política a serviço dos mais pobres, tendo a justiça social como prioridade, e vê na criação de riqueza a única maneira de fazer recuar a miséria. "O liberalismo econômico consegue isso melhor do que uma economia estatizada. Mas o mercado só é legítimo para as mercadorias. Ora, a justiça não é uma mercadoria, nem a liberdade ou a dignidade... Portanto, vamos confiar ao mercado tudo o que é para vender, e solicitar ao Estado que se ocupe de tudo o que não é para vender. Não há que escolher entre um e outro; precisamos do mercado para criar riqueza e do Estado para proteger a liberdade e criar justiça".
Além disso, para ele, moral e política não se confundem. "A política não se reduz à moral: quem governa não são os mais virtuosos, mas os que ganharam as eleições. Os homens políticos devem, então, ter uma moral como qualquer um, mas ela não pode substituir um programa ou a eficácia. A moral diz respeito aos fins e se julga pelas intenções; a política, aos meios, e se julga pelos resultados. Não contemos com os bons sentimentos para substituir a eficácia."
Quanto aos próximos projetos, ele destaca um livro sobre a diferença entre o relativismo, que assume, e o niilismo, que recusa. E avisa, pedindo desculpa pela imodéstia: "Tenho a sensação de ter alcançado mais ou menos o que tinha como objetivo: propor uma filosofia - materialista, racionalista, humanista - para nosso tempo. Quanto ao mais, a vida é mais preciosa que os livros. Publiquei cerca de 20, que somam mais de 5 mil páginas. Tudo indica que o essencial de minha obra esteja atrás de mim".
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