Felipe Charbel*
A prudência como qualidade que transforma o estudo das coisas antigas e a experiência das coisas modernas
em conhecimento efetivo da realidade é o tema deste artigo da série comemorativa dos 500 anos de ‘O príncipe’.
(arte: Ampersand)
O príncipe prudente, segundo Maquiavel, é aquele que não apenas tem a habilidade de analisar, interpretar e, quando é o caso, intervir na realidade, mas também o que sabe encontrar os meios adequados de persuasão.
De Aristóteles até o final do século 18, a prudência foi vista, por muitos filósofos políticos, como uma das qualidades mais importantes que os seres humanos deveriam ter para orientar sua ação e para intervir num mundo dominado pelas contingências. No pensamento político de Maquiavel, a prudência tem um lugar central, embora nem sempre reconhecido pelos intérpretes da obra do florentino. Ela é, ao mesmo tempo, uma qualidade necessária à ação política e à análise da política. Na prudência, ação e análise convergem em um só princípio.
Em O príncipe, Maquiavel expõe seu “entendimento das ações dos grandes homens”, ou seja, tudo o que aprendeu na “longa experiência das coisas modernas e no estudo contínuo das antigas”. O que ele apresenta é exatamente sua prudência, ou seja, sua capacidade de analisar e interpretar a realidade. E também de intervir nela, se for o caso.
A prudência, para o secretário florentino, é precisamente essa qualidade intelectual que permite transformar o estudo das coisas antigas e a experiência das coisas modernas em conhecimento efetivo da realidade. Ou, para empregar um termo que ele utiliza no capítulo 15 de O príncipe, em “verità effetualle della cosa”, um tipo de saber político muito diferente do conhecimento abstrato, associado ao estudo de “repúblicas e principados que nunca se viram nem se verificaram na realidade”.
Distância do conceito humanista
Maquiavel distancia-se das formas de examinar a política próprias do pensamento político dos humanistas do seu tempo. É possível notar, em seus escritos, uma mudança de procedimento analítico, embora não haja uma mudança na palavra utilizada para caracterizar esse procedimento: tanto o secretário como os humanistas reconheciam na prudência a qualidade intelectual que alguém deveria ter para o trato correto dos assuntos públicos.
Mas o que o secretário entende por prudência distancia-se em grande medida do seu conceito humanista. Ela não está submetida à justiça, por exemplo, ou a preceitos religiosos, especificamente cristãos, o que se pode perceber nas seguintes passagens de O príncipe, assim como em outros momentos de sua obra: “O príncipe, se for prudente, não deverá importar-se com a pecha de miserável”; “um soberano prudente não pode nem deve manter a palavra quando tal observância se reverta contra ele e já não existam motivos que o levaram a empenhá-la”.
Em Maquiavel, a efetividade analítica está diretamente associada à capacidade de formular um juízo correto com velocidade, de identificar um problema em seu nascimento, de antever os efeitos das possíveis ações realizadas por reis, príncipes, embaixadores e Repúblicas
Mas não se pode entender o alcance do conceito de prudência em Maquiavel apenas pela negativa. O mais importante nesse deslocamento em relação ao quadro tradicional das virtudes são as novas possibilidades que ele abre tanto para o exame da política como para a ação. Como o princípio da efetividade analítica é alçado ao primeiro plano, em detrimento da subordinação abstrata da análise política aos preceitos morais das tradições filosóficas da Antiguidade e do cristianismo, a interpretação da realidade dependerá exclusivamente da habilidade do intérprete, de sua capacidade de discernir nas “coisas do mundo” os princípios adequados para a ação.
Em Maquiavel, a efetividade analítica está diretamente associada à capacidade de formular um juízo correto com velocidade, de identificar um problema em seu nascimento, de antever os efeitos das possíveis ações realizadas por reis, príncipes, embaixadores e Repúblicas.
Ninguém deve “se concentrar”, escreve em O príncipe, “apenas nos distúrbios presentes, mas também nos futuros, fazendo de tudo para evitá-los, pois com a prevenção é possível remediá-los mais facilmente, ao passo que, quando se espera demasiado, o tratamento não chega a tempo, porque a doença já se tornou incurável; é como a tísica, que, segundo os médicos, a princípio é fácil de tratar e difícil de diagnosticar, mas, com o passar do tempo, não tendo sido diagnosticada nem tratada precocemente, se torna fácil de reconhecer e difícil de curar. É o que acontece com os assuntos de Estado: reconhecendo à distância os males que medram nele — o que só é dado ao homem prudente —, é possível saná-los de pronto; porém, se por imprevidência os deixarem crescer a ponto de se tornarem visíveis aos olhos de todos, não haverá mais remédio”.
Mas a prudência, em Maquiavel, não possui uma dimensão apenas calculativa, associada ao exame dos modos de intervenção política que podem produzir resultados consistentes. Ela é também performativa, ou seja, é domínio da prudência encontrar os meios adequados de persuasão. O cálculo sem eloquência é inútil.
É o que diz Maquiavel na seguinte passagem dos Discursos: “Desse tipo de homem”, o prudente, “é fácil que nunca surja nenhum em dada cidade, e, mesmo que surgisse, pode ser que nunca persuadisse os outros daquilo que pretendesse”. A prudência não se reduz à reflexão, ao processo de ajuizamento, mas envolve também a escolha de estratégias adequadas de composição textual e de expressão. A prudência não pode prescindir do reconhecimento público. Sem a unidade entre pensamento e expressão, não há verdades efetivas.
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* Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro
Fonte: http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/sobrecultura/2013/11/prudencia-e-conhecimento-efetivo
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