José Eustáquio Diniz Alves
A questão populacional sempre foi um tema de disputa ideológica, religiosa e científica. No início da Revolução Industrial e Energética, que começou na segunda metade do século XVIII, as questões demográficas foram debatidas na polêmica entre o pessimista Thomas Malthus e os otimistas William Godwin e o Marquês de Condorcet.
Malthus, que se tornou o primeiro professor de economia, era contra o desenvolvimento econômico e, para argumentar a favor da renda da terra e dos interesses dos latifundiários do antigo regime, defendia um salário de subsistência que funcionasse como um “freio positivo” para controlar a população via aumento das taxas de mortalidade. O pastor anglicano era também contra o “livre cambismo” (a liberação da importação de cereais) e contra a ajuda aos pobres e desvalidos da Inglaterra. Ao contrário do que muita gente pensa, Malthus não era a favor dos métodos contraceptivos, da esterilização, do aborto, nem dos filhos fora do casamento, pois defendia a virgindade antes do matrimônio e o sexo com finalidade generativa entre os casais heterossexuais. Só aceitou a ideia de adiamento do casamento – como “freio preventivo” – na segunda edição do seu Ensaio e depois de muita relutância.
William Godwin e o Marquês de Condorcet foram precursores da ideia da transição demográfica. Eles consideravam que o progresso humano – possibilitado pela aplicação da racionalidade da ciência e da tecnologia e pela “perfectibilidade do ser humano” – levaria à redução das taxas de mortalidade e natalidade. Ou seja, eles não viam que o crescimento populacional desregrado iria ser um entrave ao progresso. Mas eles também nunca defenderam um crescimento populacional irracional.
A história se encarregou de mostrar os equívocos de Thomas Malthus e demonstrou que, em diversas circunstâncias, é possível erradicar a pobreza, a fome, as epidemias, as guerras, etc. Em especial, os dados dos últimos 200 anos mostram que foi possível reduzir a taxas de mortalidade em geral, da mortalidade infantil, em particular, assim como o aumento da esperança de vida da população mundial que, de maneira inédita, dobrou durante o curto espaço de um século, passando cerca de 30 anos em 1900 para 66 anos no ano 2000.
Porém, os ganhos de esperança e qualidade de vida são tanto maiores quanto menores forem as taxas de fecundidade. A história também mostra que não existe país com alto índice de desenvolvimento humano e, ao mesmo tempo, com alta fecundidade. A redução do número médio de filhos por mulher é uma condição para a melhoria do padrão de vida da população. Famílias menores possibilitam maiores investimentos em saúde e educação das crianças e maior autonomia para as mulheres. Isto é particularmente mais verdadeiro depois que se inverte o fluxo intergeracional de riqueza. Ou seja, a fecundidade era alta quando a mortalidade também era alta e quando predominava a economia rural, de subsistência, com alta percentagem de analfabetismo e grande desigualdade de gênero.
Hoje em dia é fácil reconhecer os ganhos da transição da fecundidade. Mas nos anos de 1950 e 1960 esta discussão estava muito ideologizada. Os neomalthusianos, ao contrário de Malhtus, defendiam o controle da natalidade, alguns defendiam métodos voluntários, outros defendiam a queda da fecundidade até por meio de medidas coercitivas e autoritárias. Alguns defendiam também o aborto. Os neomalthusianos consideravam que a redução do ritmo de crescimento da população era essencial para o “take off” (decolagem) do desenvolvimento, pois não haveria crescimento da renda per capita sem a redução do denominador da equação que define a renda nacional agregada.
Ficou famosa a frase do presidente dos Estados Unidos, Lyndon Jonhson: “Mais vale 5 dólares investidos em planejamento familiar do que 100 dólares investidos em desenvolvimento”. Este tipo de postura fez os neomalthusianos serem execrados no Terceiro Mundo, pois eram vistos como as pessoas que queriam controlar a população em vez de promover o desenvolvimento. A Conferência de População de Bucareste, em 1974, para se contrapor ao neomalthusianismo, lançou a seguinte palavra de ordem: “O desenvolvimento é o melhor contraceptivo”. Com isto, os países subdesenvolvidos (ou do Terceiro Mundo, ou em desenvolvimento, ou emergentes, ou do Sul Global, etc.) e as forças ditas de esquerda passaram a dar prioridade ao processo de crescimento econômico e não à redução do ritmo do crescimento demográfico. Assim, o neomalthusianismo passou a ser um anátema entre os países pobres do mundo.
Todavia, a China comunista que se opunha ao neomalthusianismo na década de 1960 – especialmente durante a Revolução Cultural – passou a promover o neomalthusianismo voluntário durante a década de 1970 (quando a fecundidade caiu de 6 filhos para 3 filhos por mulher) e passou a aplicar o neomalthusianismo mais draconiano da história mundial a partir de 1979, quando entrou em vigor a política autoritária do “filho único” (quando a fecundidade caiu de 3 filhos para 1,5 filho por mulher entre 1980 e 2012). Recentemente, o ativista cego Chen Guangcheng se notabilizou mundialmente por defender as mulheres forçadas a realizar abortos e esterilizações impostas pelo governo chinês de partido único e, por conta disto, recebeu apoio dos Estados Unidos, onde mora hoje em dia.
No Brasil, o neomalthusianismo foi muito combatido na década de 1960 e início da década de 1970 quando se formou a aliança política e ideológica mais esdrúxula da história brasileira. Para combater o neomalthusianismo se aliaram a igreja católica, os militares, a esquerda e as femininistas.
As posturas pró-natalistas da Igreja Católica foram reforçadas pelo lançamento, em 1968, da Encíclica Humanae Vitae pelo Papa Paulo VI. Os militares que tomaram o poder em 1964 adotaram posturas demográficas expansionistas, expressas no Programa Estratégico de Desenvolvimento (1968-1970) e na política de ocupação dos “territórios de vazio demográfico”, com o objetivo de garantir a “segurança nacional” e o desenvolvimento, como ficou claro nos documentos de lançamento da construção do maior símbolo do desperdício financeiro e da agressão ambiental que é a rodovia Transamazônica. As forças de esquerda eram contra o neomalthusianismo com o argumento de que o controle da natalidade era uma estratégia do imperialismo para manter a iníqua ordem econômica internacional que pretendia manter subdesenvolvidos os países da periferia do sistema capitalista. As feministas eram contra o neomalthusianismo por considerar que as políticas controlistas desrespeitavam a autonomia das mulheres e promoviam práticas invasivas de redução da fecundidade.
Evidentemente, esta aliança espúria não tinha muito tempo de vida. A igreja católica continuou a defender a ordem tradicional das famílias heterossexuais com muitos filhos, mas os militares abandonaram o radicalismo pronatalista depois do fracasso da colonização da Amazônia, da constatação que não havia perigo de invasão do país e do agravamento dos problemas ambientais. A esquerda começou a chegar ao poder a partir de 1982 e viu que o combate à pobreza e ao inchaço sem planejamento das cidades era impossível num regime de alta fecundidade. As verdadeiras feministas (não atreladas aos partidos) romperam com a igreja, os militares e a esquerda ao defender o direito à livre sexualidade (inclusive a união homossexual), a autonomia das mulheres e ao passar a defender os métodos contraceptivos dentro do Programa de Assistência Integral à Saúde das Mulheres (PAISM).
O fato é, contra tudo e contra todos, as taxas de fecundidade caíram de forma acelerada no Brasil e já estão abaixo do nível de reposição, desde 2005. Isto aconteceu sem que o país tivesse uma política explícita de controle da natalidade. De fato, as taxas de fecundidade são tanto menores quanto maiores são os níveis de cidadania e inclusão social. São os setores de baixa renda e baixo nível de escolaridade que ainda possuem fecundidade pouco acima do nível de reposição. Isto ocorre mais pelo “efeito perverso”, definido por Vilmar Faria, e pela falta de acesso às políticas de saúde sexual e reprodutiva, do que por desejo de um maior número de filhos.
Mas, mesmo fora de moda, o neomalthusianismo continua sendo uma palavra maldita. Diversos setores do dogmatismo religioso, representantes do conservadorismo moral e forças do fundamentalismo de mercado continuam praticando uma política anti-neomalthusiana, embora o neomalthusianismo não faça mais sentido na realidade brasileira do século XXI. Os defensores do desenvolvimentismo também costumam combater o neomalthusianismo, pois querem o crescimento da oferta de mão de obra para o crescimento econômico.
Na verdade, hoje em dia, o xingamento neomalthusiano serve para disfarçar as verdadeiras intenções dos defensores de políticas pró-natalistas e anti-ambientais. Os defensores do meio ambiente e os críticos do processo de desenvolvimento são, volta e meia, acusados de serem neomalthusianos ou de “neomalthusianismo verde”. Nos Estados Unidos, por exemplo, as forças pró-natalistas estão concentradas no Partido Republicano e, em especial, nas alas do conservadorismo moral, do dogmatismo religioso e nas fileiras direitistas do Tea Party. São exatamente estas forças que defendem a exploração sem restrições dos combustíveis fósseis, são céticos em relação ao aquecimento global, não se preocupam com a biodiversidade e querem um crescimento econômico sem limites.
Se é certo de que ainda existem pessoas que culpam a população por todos os males do mundo, não resta dúvidas de que as correntes anti-neomalthusianas de hoje estão mais concentradas nas alas conservadoras e direitistas da sociedade ou entre a ideologia desenvolvimentista. Mas este conservadorismo atual se esconde atrás de uma palavra pejorativa – que é o neomalthusianismo – para defender interesses escusos e fortalecer a ideia de que o desenvolvimento econômico é a solução para todos os males da humanidade e a maneira de corrigir a degradação do meio ambiente (explicitado na Curva de Kusnetz). Seguidores de Ester Boserup e Julian Simon defendem o crescimento populacional em nome do crescimento econômico, mas, em geral, ignoram os custos ambientais destas posturas populacionistas e desconsideram que a ideia de “desenvolvimento sustentável” é muito mais um oximoro do que uma realidade prática.
O desenvolvimento econômico mundial encontra-se em um impasse, pois a humanidade já ultrapassou os limites das fronteiras planetárias e a pegada ecológica está 50% acima da biocapacidade da Terra. Os países ricos – que possuem alto nível de consumo e taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição – já podem iniciar o processo de declínio da população e da demanda agregada, começando pelo declínio dos produtos de luxo e das atividades mais poluidoras. Diversos países em desenvolvimento também já possuem taxas de fecundidade abaixo do nível de reposição e, em breve, terão redução da população e podem fazer com mais facilidade a transição para uma economia de baixo carbono e de baixa exploração dos recursos naturais. Os países muito pobres – com alta fecundidade – precisam fazer a transição para uma sociedade com baixo crescimento demo-econômico, dando menos ênfase para o aumento da produção quantitativa e mais valor para as atividades de melhoria qualitativa da população e do meio ambiente.
De acordo com a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento (CIPD) devemos superar o conflito natalismo versus controlismo e adotar a prática dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, buscando a universalização das informações e dos serviços de saúde sexual e reprodutiva. Não faz mais sentido nem as posturas do neomalthuasinismo e nem do anti-neomalthusianismo. O dístico “População & Desenvolvimento” tem que ser repensado. A população humana tem que ser posicionada em um quadro de sustentabilidade ecocêntrica e o desenvolvimento econômico só faz algum sentido se abandonar o modelo consumista, respeitar a saúde dos ecossistemas e garantir a livre evolução da biodiversidade.
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