J. J. Camargo: A despretensão de um gesto

 

A solidariedade, por si só, pode brotar em qualquer lugar ou circunstância

 

                                        Ilustração: Eduardo Uchôa/Agência RBS

*J. J. Camargo é cirurgião e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórida

É certo que a ajuda organizada com fins específicos, e direcionada para um alvo predeterminado, tem o mérito de atenuar a distribuição heterogênea de recursos e ainda mascarar as disparidades sociais. Por isso, devem ser louvadas todas as ONGs sérias que encontraram espaço e razão de ser na esteira de um serviço público deficiente. E nada estimula mais os mentores dessas organizações do que a gratidão genuína dos ajudados.

Mas a solidariedade por si só, sem outros objetivos, sem a perspectiva de ganhos secundários, pode brotar em qualquer lugar ou circunstância e se realizar na plenitude. O gesto pode ser pequeno e fugaz, e a lembrança dele, ainda assim, marcante e definitiva. E ele, muitas vezes, nasce dessa forma, do improviso.

A carta parecia formal, a introdução educada, a letra redonda e miúda:

"O senhor não me conhece, não sabe nada da minha história e provavelmente já se esqueceu do nosso 'encontro', mas eu não. Vou lembrar daquele momento pra sempre, porque ele marcou minha vida num instante de grande sofrimento.

Sou filha única e meu pai, minha vida, estava morrendo na UTI do Pereira Filho, de uma septicemia, e depois de ouvir a médica repetir que o quadro era de infecção não controlada, e sem ter ao menos um irmão com quem dividir a dor, saí para o corredor com vontade de gritar.

Em vez disso, enfiei a cabeça num canto da parede e chorei. Muito e soluçado. De repente, do nada, dois braços grandes e fortes me envolveram, e ouvi: 'Desculpe, mas fiquei com pena do teu choro, e senti vontade de te abraçar.'

Depois de um minuto ele se foi e fiquei outra vez sozinha no meu canto. No dia seguinte, meu pai morreu, e não pretendo voltar ao hospital, mas nunca esqueci o abraço gentil, que foi uma âncora para mim naquele momento em que meu mundo desmoronava.

Quis agradecer, mas não sabia a quem, afinal eu só tinha uma cara sem nome. Um dia desses, assistindo a uma entrevista no Mãos e Mentes da TVCOM, soube finalmente por quem tinha sido abraçada, e posso, então, agradecer.

Mesmo sabendo da sua condição de médico famoso, espero nunca precisar dos seus serviços porque tenho horror da ideia de doença, mas jamais vou esquecer do seu carinho, que tornou quase suportável aquele dia, que, pela saudade que sinto do meu pai, ainda não terminou. Só quero lhe pedir uma coisa: não desista. Tem muita gente carente de abraços por aí".