Rodrigo Petronio*
Um escritor inglês chamado James Miller (William Shimmell) lança um livro em Nápoles. Na plateia, Elle (Juliette Binoche), dona de uma galeria, que vive há anos na Itália, assiste à sua conferência. O título da obra é exatamente o nome do filme: "Cópia Fiel". Qual é a tese do personagem-escritor? A originalidade não existe. É preciso ir além da superficial intencionalidade do artista. Se reconstruirmos as intersecções, intertextualidades e motivações envolvidas na criação de uma obra de arte, descobriremos que o original se perdeu para sempre.
Em termos evolucionários e antropológicos, qual é a originalidade de microvariações do código genético ao longo de milhões de anos? Cada fisionomia humana seria um breve lampejo diferencial na textura monótona do universo. Toda obra seria uma cópia mais ou menos fiel de obras anteriores. Por isso mesmo, toda cópia tem uma beleza intangível. Todo simulacro traz em si uma potência. Uma verdade.
Mas se no plano da arte isso é possível, como estender esse lema à nossa vida? Existiria uma vida sem autoria? E ela seria desejável? Essas questões vão surgindo à medida que Elle e Miller se deslocam para um vilarejo no interior, em Lucignano, onde existe uma Gioconda. É apenas a cópia de um afresco feita por um falsificador napolitano. Tamanha é sua perfeição que o museu a exibe como se fosse original. Mais: os espectadores acreditam estar diante de um Leonardo.
O espelhamento entre cópia e original não termina aqui. A certa altura, a dona de um café pensa que Elle e Miller são marido e mulher. Ambos assumem a designação desse terceiro que os nomeia. Um jogo se instala entre os dois. Uma ficção da ficção se desdobra aos olhos do espectador. Nessa encenação, o suposto casal compartilha fragmentos de lembranças para testar os limites da representação. Sentimos uma mudança sutil. Aquele talvez não seja um encontro, mas um reencontro.
O diálogo passa a dar vestígios de um possível reconhecimento. Começam a ficcionalizar ou relembrar um passado a dois. Enredamo-nos em um jogo de ilusionismo. Editam falas do passado? Improvisam como dois atores que se apreendessem a si mesmos como atores? Eis-nos imersos na forma pura da indecidibilidade, como diria Derrida.
Nessa obra-prima, o diretor iraniano Abbas Kiarostami propõe uma contundente reflexão sobre o próprio processo criativo e o sentido da arte. E o faz ao revelar os cruzamentos infinitos entre arte e vida. Ou seja: ao ser fiel a uma das mais antigas e menos originais metáforas para a atividade criadora. Nesse sentido, para além da dialética entre cópia e original, o filme de Kiarostami sugere algo mais complexo. Algo mais visceral.
Define a própria condição humana como um fluxo tensionado entre a autoria e a desidentificação. Um pêndulo entre originalidade e renúncia criativa a toda fixidez. Somos, a cada instante tramado na película tangível do tempo, a soma do que fomos, do que poderíamos ter sido, do que deixamos de ser e do que viemos a nos tornar. Além disso, somos também tudo o que ainda poderemos vir a ser. Deixar de ser. Transformarmo-nos.
Captar esse fluxo feito de silêncio e vertigem não é um patrimônio da arte - essa parece ser a mensagem de Kiarostami. Não há distância alguma entre o fingido e o vivido porque a ficção é a soma de todas as máscaras que paradoxalmente nos aproximam mais do que somos. Enredam-nos no âmago da vida ao nos distanciar daquilo que supúnhamos ser. Oferecem-nos o enigma de sermos capazes de decifrar o que se esconde nas camadas virtuais do espelho. Apenas assim é possível realizar o imperativo de Nietzsche: transformar-se no que se é. Tornar-se algo que provavelmente sequer havíamos intuído existir sob nossa pele.
Não é por outro motivo que a liberdade é uma das questões centrais do "Homo sapiens" em sua jornada. E é por causa da dificuldade de separar o vivido, o real e o imaginado que em geral esbarramos em uma visão superficial da liberdade. Acreditamos que ser livre é poder ser o que somos. Engano. A grande liberdade não consiste em sermos o que ilusoriamente imaginamos ser. Consiste em podermos não ser aquilo que não somos.
A grande liberdade não é uma grande afirmação. É uma derradeira renúncia. Não é uma afirmação do exercício de nossos limites. É sim a criação de um campo de possibilidades ilimitado em direção ao que podemos vir a ser. A liberdade não é a segurança do exercício de si. É o elogio da metamorfose e da transformação dos eus virtuais que se ocultam potencialmente em nós - e que desconhecemos. Modo puro da metamorfose.
Uma visão voluntarista desse ato pode nos enredar em camadas ainda mais profundas de ilusão. Por isso a liberdade é tão difícil. Mais importante do que ser livre para escolher é saber quem em nós escolhe quando escolhemos. Por que este ou isto que em nós escolhe decidiu escolher o que enfim acreditamos ter escolhido por livre vontade? Toda a autodeterminação humana é uma apreensão da nossa finitude. Um reflexo de nossa precariedade. Um hino à contingência.
E isso porque, ao fim do caminho, muitas vezes nem sequer supomos quem iluminou o caminho por onde decidimos caminhar. Seguir os instintos ou a moral é obedecer mais aos nossos avós do que a nós mesmos. Muitas vezes nosso eu não é nada mais do que um fantasma. Parido pelo medo. Projetado em um labirinto de espelhos. Sermos fiéis a nós mesmos pode ser o mais triste dos enganos.
Ao definirmos o que somos, quem garante que não estamos sendo a cópia fiel de nossos ancestrais ocultos em alguma caverna interior? Não por acaso, como tragicamente intuiu Nietzsche, é possível nos darmos conta apenas no leito de morte que toda nossa vida foi um equívoco. Essa luta constante da autorrealização é o esteio mesmo da vida. Inescapável.
Outro dia, vasculhando gavetas antigas, deparei-me com um poema. Ao lê-lo, a surpresa. Não pelo seu teor. Nem pela perícia ou a inépcia dos versos. Tudo isso é secundário. O susto se deu por um fato muito mais prosaico: o poema era meu. O continuum de identificação e desidentificação é a essência não apenas de nossa apreensão temporal do eu. É também o enigma de toda arte.
Toda obra de arte é uma maneira de conferir sentido a instantes recolhidos do tempo. Redimi-los do caos indiferenciado. Ampará-los em alguma dimensão transpessoal na qual consigamos sentir as vidas alheias como se fossem nossa vida. Em outras palavras: onde possamos ser fiéis a nós mesmos por meio de outras vozes. A oscilação temporal entre continuidade e descontinuidade simultaneamente dilui e reinstaura o eu. Só assim podemos falar em primeira pessoa.
Não é por outro motivo que a mãe de todas as artes é a Memória, a deusa Mnemosine. Reter os fios esparsos da vida e por meio deles preservar a integridade parcial do que fomos um dia. Para além de todas as artes, essa parece ser a grande Arte. A matriz de onde brotam todas as representações mentais e afetivas de que somos capazes. Se o imaginário amplia as fronteiras do real sem as dissipar, só o faz porque as linhas invisíveis da memória conseguem dotar de unidade o que fomos e o que seremos. Traz as imagens do sonho para a consciência até dissipar os limiares entre o possível e o realizável.
Nos primeiros volumes de sua obra monumental, Proust insere a sonata para piano tocada na casa dos Verdurin. Ela se transforma no tema do amor de Swan por Odette de Crécy. Deleuze, em páginas impecáveis, percebeu muito bem que o tema musical era um ritornelo. Ou seja: uma linha musical que se repete. Sim. Mas que se repete articulando de modo diferencial a série harmônica. Em outras palavras, não é a repetição de uma mesma unidade. É a repetição de unidades que só são identificadas como unidades porque se repetem de modo diferente. A diferenciação confere identidade àquilo que se diferencia de si mesmo justamente ao se repetir.
No plano romanesco, esse recurso formal materializa como o Swan que havia se apaixonado por Odette não é o mesmo Swan que depois medita sobre o fim desse mesmo amor. No terceiro volume, vemo-lo até incrédulo por não conseguir reconhecê-la no retrato da antiga amada feito pelo pintor Elstir. No plano da vida, esse ensinamento de Proust demonstra que o desenvolvimento, o ápice e o declínio do amor de Swan não são nada mais do que a possibilidade de estarmos condenados a sermos diferentes de nós mesmos ao amar uma mesma pessoa. E também de amarmos igualmente uma mesma pessoa cujo rosto nos escapa, multiplicado em prismas no devir temporal, ainda que continue sendo formalmente o mesmo.
Por vias diferentes, talvez Proust e Kiarostami estejam encenando um dos maiores enigmas da vida. Se toda a vida existe e apenas existe como um fenômeno temporal. E se o tempo é a substância mesma de que somos feitos, como bem definiu Jorge Luis Borges. Então a vida pode ser entendida como um infinito gesto de diferenciação. Em outras palavras, como uma constante desidentificação daquilo que supomos ser. Nesse sentido, sermos fiéis a nós mesmos pode ser o caminho mais seguro de simplesmente copiarmos algo que desconhecemos. Uma das formas mais sublimes de alienação.
Parafraseando o crítico Harold Bloom, a angústia não nasce do medo da influência. Ela surge sim da falsa suposição da originalidade. Sermos originais pode ser a mais anódina de todas as mentiras. E reconhecermos a replicação infinita das vozes distantes que nos constituem pode ser o primeiro passo para podermos ouvir os acordes diferenciais de uma música personalíssima. Eles são as frases soltas que se unificam e se dispersam, dia a dia, na eterna conquista de um rosto amado. Apenas assim podemos responder pelo que somos. Apenas assim transformarmo-nos no que somos será enfim o último gesto de nossa liberdade.
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* Rodrigo Petronio é escritor e filósofo. Autor, editor e organizador de dezenas de obras. Professor da Faap, do Museu da Imagem e do Som (MIS) e da Casa do Saber
FONTE: Valor Econômico on line, 15/11/2013
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