Antropóloga mergulha no universo de usuários da droga, em Campinas e São Paulo, para fundamentar tese de doutorado premiada pela Capes
Ao longo da pesquisa, muito do sentimento de vergonha demonstrado por mim e pelos usuários, expresso no silêncio rápido, mas constrangedor, no desviar de olhos, num certo embaraço, estava ligado ao fato de eu estar limpa. Não poucas vezes, quando estendia a mão para cumprimentá-los, ouvia de volta o pedido de desculpas, quase de recusa, por estarem sujas, seguido de uma mão que se juntava à minha de forma bastante tímida. Um tanto inconscientemente, comecei a ir a campo com roupas desgastadas e calçando tênis velhos, passei a não lavar os cabelos nos dias de pesquisa, não soltá-los, não utilizar adereços (como brincos ou colares) e não passar perfume. Achei que assim a minha limpeza não os afrontava tanto e não precisava gerar tanto desconforto. Em Campinas, como sempre fazíamos atividades no período da tarde, era comum eu almoçar em casa antes de seguir para o PRD. Uma vez, fiz macarrão com molho de tomate e alguns pingos grandes do molho sujaram minha camiseta. Nem passou pela minha cabeça trocá-la. Senti-me muito à vontade de transitar com ela pela linha férrea, ainda que tenha sido observada com certo estranhamento pelas pessoas que estavam no ônibus que me levou até lá. Nesse mesmo dia ainda, me vendo chegar suja para a atividade de campo, um dos redutores brincou: “é, já tá pegando o espírito da linha, hein?”.
Taniele Rui, autora do texto acima, precisou despojar-se de seus temores e constrangimentos para reunir fôlego e mergulhar de alma e corpo – literalmente – em um universo muito particular dos usuários de crack: aqueles que, em sua maioria, por uma série de circunstâncias sociais e individuais, largaram tudo o que possuíam (família, trabalho, casa, bens) e desenvolveram com a substância uma relação extrema e radical, chamados frequentemente “nóias”.
A profunda imersão diluiu até mesmo a sua identidade acadêmica, em um progressivo fenômeno de mimetização do ambiente em que se inseriu. Ela transmutou-se em agente de saúde, educadora social, redutora de danos e psicóloga, materializando personagens com os quais os usuários estavam acostumados a conviver. Ao voltar à tona, escreveu “Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack”, tese de seu doutorado em Antropologia Social no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Orientado por Heloisa André Pontes, docente do IFCH, e coorientado por Simone Miziara Frangella, professora do Instituto das Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o estudo conquistou o Prêmio Capes de Tese 2013 na categoria Antropologia/Arqueologia. Produzido ao longo de quatro anos, com financiamento da Fapesp, o trabalho é um denso e pungente relato autoral de mais de 300 páginas acerca do consumo abusivo do crack a partir de uma perspectiva sociocultural. Lê-se o texto da pesquisa como o inebriante diário de uma longa e dramática viagem a cenários variados de uso e comércio da droga nas cidades de Campinas e São Paulo, nos quais, em diferentes oportunidades, a autora experimentou emoções contraditórias.
“Não poucas vezes durante a pesquisa tive a sensação de que um conflito iminente poderia acontecer; não poucas vezes deixei de temer inclusive pela minha própria vida, voltando para casa com uma estranha sensação de agradecimento por estar bem. Não poucas vezes também me senti tão à vontade em espaços à primeira vista bastante hostis”, confidencia.
A construção da narrativa tem como fonte primária os três cadernos de anotações acumulados por Taniele nos dois anos e meio dedicados ao trabalho de campo, entre agosto de 2008 e dezembro de 2010. Neles registrou metodicamente todos os detalhes de seu cotidiano: descobertas, situações testemunhadas, conversas, angústias, dúvidas. Para compor a etnografia ela valeu-se ainda de extenso material publicado pela imprensa sobre o assunto. Teorias acadêmicas de diferentes autores ajudaram a iluminar seus achados e contribuíram para as reflexões sobre a sua relação com os usuários e suas histórias apresentadas nas páginas da tese, que tem ainda o mérito de, ao tratar do crack, abordar questões bastante caras às Ciências Sociais, como violência e marginalidade urbanas, desigualdade social, políticas sociais e de saúde, entre outras.
Notoriedade inesperada
A temática das drogas permeia a atuação acadêmica de Taniele desde 2005, quando, para a dissertação de mestrado, escolheu abordar discursos sobre o uso de substâncias psicoativas entre pacientes de uma instituição para tratamento de dependentes químicos, entre meninos e meninas de rua e entre estudantes universitários. No doutorado, pretendia dar prosseguimento à pesquisa anterior, porém focando a experiência dos usuários nos locais de consumo em Campinas. Buscou a mediação do Programa de Redução de Danos (PRD) mantido pela Secretaria Municipal de Saúde para realizar o trabalho de campo. Somente quando começou a constatar a importância do crack na problemática do consumo de drogas é que o tema ganhou prioridade em seu estudo.
“O consumo de crack acabou se impondo durante o trabalho não só porque tive mais contato com usuários dessa substância, mas, sobretudo, porque durante a pesquisa o crack acabou ganhando uma notoriedade inesperada. Nos jornais impressos, na televisão, nas políticas urbanas e de saúde, entre os traficantes, onde eu olhasse parecia só ver falar do crack”, justifica a pesquisadora, que a partir de então se viu compelida a olhar também para o universo da região que ficou conhecida como “cracolândia” em São Paulo como de suma relevância para o melhor entendimento do tema.
Nesse processo, a figura do “nóia” tomou uma dimensão não prevista e ganhou centralidade na investigação, concentrando o seu enfoque. Ao mesmo tempo em que está completamente excluído da vida social, é esse usuário, de maneira paradoxal, que justifica – com seu estado corporal considerado de degradação extrema e alvo de rejeição – todo o aparato repressivo, assistencial, religioso, midiático e sanitário mobilizado em sua órbita. O “nóia”, observa Taniele, fez o Ministério da Saúde reestruturar suas políticas para o problema das drogas no país, a exemplo de outras medidas adotadas pelo poder público para lidar diretamente com a questão do crack.
Cenário desolador
A Redução de Danos é um conjunto de políticas e práticas com o propósito de reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usar drogas. Por definição, foca na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas, por meio de orientações, distribuição de seringas descartáveis, preservativos e vacinação contra doenças infectocontagiosas. Com a ajuda desses serviços em Campinas e em São Paulo, Taniele esteve em contato com usuários de crack, com seus modos de obtenção da substância, participou de suas conversas, presenciou a preparação e o consumo da droga nos próprios contextos de uso.
Em Campinas, percorreu muitos mocós, becos, casas abandonadas, linhas de trem (a “linha” mencionada na introdução deste texto) e galpões desocupados que garantem aos usuários de crack alguma privacidade, situados nos bairros Paranapanema e São Fernando, na região sudeste da cidade. Incursões foram também realizadas ao esqueleto de um edifício em obras abandonado na Vila Industrial e utilizado como refúgio de consumidores. Nas muitas das visitas que fez em Campinas, ela e os redutores (os profissionais dos PRDs) levavam cerca de quarenta minutos a uma hora e meia de ônibus ou a pé para chegar aos locais de consumo.
Em São Paulo, concentrou seu roteiro no espaço conhecido como “cracolândia”, por agrupar grande quantidade de pessoas consumindo crack publicamente e que se tornou alvo dileto das políticas de segurança, de saúde, assistenciais e urbanísticas.
Nesses redutos encontrou quase sempre o mesmo cenário de desolação: escombros de imóveis, muitos papéis que embrulham o crack, cartões telefônicos usados para a separação das porções do produto, palitos de fósforo, isqueiros, restos de alimentos e de roupas, cobertores, excreções humanas, chapas de alumínio que servem de apoio para preparar e separar a droga, latas de refrigerante e embalagens de iogurte usadas como cachimbo.
Taniele evitou uma postura meramente contemplativa no trabalho de campo e deixou claro que para os propósitos da pesquisa era fundamental interagir o máximo possível tanto com os profissionais de redução de danos quanto com os atores sociais por eles acessados. Essa opção fez com que precisasse assumir um papel atuante nos grupos de redução para poder se aproximar e ganhar a confiança dos usuários: cumpriu religiosamente rotinas de visita, vestiu seus uniformes de identificação, organizou mochilas de trabalho, auxiliou em vacinações, elaborou relatórios... Em suma, incorporou-se ao “espírito da linha”.
“Essa trajetória explicita o fato de que meu objetivo inicial não foi estudar o programa ou a política de redução de danos em si, tal como fizeram outros autores, nem o uso do crack especificamente. Para mim, estar com os redutores em campo significava a possibilidade de uma situação de pesquisa bastante privilegiada que me permitiria responder questões deixadas pelo meu estudo anterior”, argumenta Taniele, agora às voltas com a transformação de sua tese em livro.
Recém-completando duas décadas de ingresso no Brasil, notadamente no Estado de São Paulo, o crack chega à maioridade desafiando as políticas de saúde, de segurança pública, urbanísticas e assistenciais, ressalta o estudo. A despeito do caráter novidadeiro e atual do crack, que se reflete na escassa bibliografia específica dedicada ao assunto, a autora acredita, com seu original estudo, ter contribuído de alguma maneira, empírica e metodologicamente, para atenuar o que percebeu ser uma lacuna na literatura nacional em Ciências Sociais dedicada ao tema. Ou ao menos – em uma comparação tão modesta quanto a observação de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) sobre o mérito de um estudo em Antropologia na abertura do clássico O Cru e o Cozido – conseguiu deixar um problema difícil numa situação menos ruim do que aquela em que foi encontrado.
A voz do Usuário
“Eu acordo e já fico louco, arrumo cinco reais e já venho comprar uma pedra e uso uma, duas horas, depende de quantas pessoas estão aqui pra dividir. Aí tenho que sair para a rua pra arrumar mais dinheiro, limpo as calçadas das pessoas que moram aqui perto, tiro a grama que cresce no cimento (nesse momento mostra suas mãos sujas, calejadas e ásperas) e elas me ajudam, dão um, dois reais e eu vou juntando. E quando eu volto pra cá eu não paro mais. Fico aqui até meu corpo não aguentar. Dois, três dias diretos. Sem comer, sem beber, sem dormir. Daí paro, dou um tempo, volto para a minha laje, durmo dois dias seguidos, como e depois venho para cá de novo.”
Fala de um usuário, colhida na linha do Paranapanema. A laje de um supermercado é a sua referência de morada.
No cachimbo com nome, a vontade de ‘ser gente’
Taniele abre espaço na tese para uma reflexão acerca da relação sentimental estabelecida entre os usuários de crack e os objetos mediadores do consumo da droga: os cachimbos. Nas cenas de uso, esses utensílios perdem sua função meramente instrumental; ganham a esfera da intimidade e nomes próprios: Bóris, Catarina e outros capazes de revelar uma afeição entre usuário e o artefato que lhe permite inalar a entorpecente fumaça.
Com folha de alumínio, isqueiro cortado ao meio, cano de PVC, porcas de parafuso, sacolas plásticas, pedaços de bambus, de antenas de rádio ou de guarda-chuvas, é possível fazer um recipiente que, ao receber uma base, em muitos casos protegida por um papel alumínio picotado com algum material cortante, está pronta para que o pó de crack, ou a pedra inteira, se misture às cinzas de cigarro. O uso de latas de refrigerante ou embalagens de iogurte também é comumente observado, relata a antropóloga.
Ao comparar os locais de consumo pesquisados, ela vê ainda uma estreita relação entre esses espaços e a confecção dos diferentes tipos de cachimbos encontrados, pois a tarefa requer disponibilidade de tempo e condições adequadas, justifica.
“A territorialidade de uso importa aqui porque, quando o cenário não possibilita a feitura desses objetos, o cachimbo se torna mercadoria. Na região mais pública da “cracolândia”, cachimbos são fabricados e vendidos por alguns comerciantes do local, por comerciantes de drogas que fazem a venda casada da pedra com o cachimbo e por outros usuários. Dependendo do material utilizado, o valor pode chegar até dezessete reais”, descreve Taniele em seu estudo.
Assim como os usuários, os cachimbos são alvo de políticas de saúde pública e da repressão policial. Na “cracolândia” frequentemente são recolhidos pela polícia. Na falta do cachimbo e do dinheiro para comprá-lo, consumidores tornam-se propensos a compartilhar entre si o aparato, o que suscita orientações específicas dos programas de redução de danos com o intuito de evitar a transmissão de doenças como hepatites B e C e herpes.
Os redutores oferecem piteiras de silicone para serem anexadas ao cachimbo e manteigas de cacau para a cicatrização e hidratação de feridas bucais. Desestimula-se também o uso de latas para a inalação de crack, porque elas ampliam a superfície de contato ao redor da boca – aumentando as queimaduras labiais e o risco de contaminação por doenças – e podem transmitir infecções quando se desconhece a sua origem.
Para Taniele, as diferentes vivências dos usuários com o instrumento mostram também que o cachimbo marca hierarquias e diferenciações internas entre os próprios consumidores. E mais: levando em conta a precariedade que marca as vidas dessas pessoas, ela identifica no uso de crack no cachimbo a fronteira última de humanidade e dignidade de que podem dar prova esses usuários. Em outras palavras, ter o próprio cachimbo pode revelar a vontade de ser gente.
NE concentra maior parte dos consumidores
Os usuários regulares de crack e/ou de formas similares de cocaína fumada somam 370 mil pessoas nas 26 capitais brasileiras e no Distrito Federal. O contingente responde por 35% do total de consumidores de drogas ilícitas (com exceção da maconha), estimado nesses municípios em 1 milhão de brasileiros. Os dados integram estudo encomendado pela Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas (Senad) à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e divulgado em setembro deste ano.
Contrariando o senso comum, segundo o qual o consumo é maior no Sudeste, o Nordeste concentra a maior parte dos consumidores: aproximadamente 150 mil usuários de crack, cerca de 40% do total de pessoas que fazem uso regular da droga em todas as capitais do país.
O levantamento mostra ainda que, entre os 370 mil usuários, 14% são menores de idade. Isso indica que cerca de 50 mil crianças e adolescentes usam regularmente a substância nas regiões pesquisadas. A maior parte deles (56%) também está concentrada nas capitais do Nordeste, com 28 mil menores nesta situação.
Mistura barata de cocaína com bicarbonato de sódio, água e uma série de outras substâncias, cujo aquecimento resulta em pequenos grãos, o crack não é uma droga nova, mas um novo jeito de administração da cocaína: fumada em vez de cheirada ou injetada – o que o faz ser considerado mais capaz de causar consumo compulsivo devido à facilidade de uso e à rápida absorção.
De acordo com o documento Usuários de Substâncias Psicoativas: abordagem, diagnóstico e tratamento (2003) da Associação Médica Brasileira, Conselho Federal e Conselhos Estaduais de Medicina, a cocaína cheirada leva cerca de 2 a 3 minutos para iniciar a ação e os efeitos duram por volta de 30 a 45 minutos; na injetada a ação se inicia em cerca de 30 a 45 segundos e os efeitos duram de 10 a 20 minutos; na forma fumada a ação tem início depois de 8 a 10 segundos e os efeitos duram de 5 a 10 minutos. Segundo o documento, “quanto mais rápido o início da ação, maior a sua intensidade; quanto menor a sua duração, maior será a chance de o indivíduo evoluir para situações de uso nocivo e dependência”.
Muito popular nos EUA desde meados da década de 1980, a droga teria surgido na cidade de São Paulo entre os anos de 1987 e 1990, segundo o livro Crack – O Caminho Das Pedras, do jornalista Marcos Uchoa (morto em 2005). Em Campinas, a data supostamente inaugural é maio de 1992, de acordo com a reportagem “Campinas registra primeiro caso de crack” publicada pela Folha de S.Paulo em 15 de maio de 1992, conforme pesquisou Taniele.
Ainda segundo seu estudo, o crack, antes vendido sob a forma de pedra, agora é comercializado também em forma de farelo, com a pedra já bastante macerada. Esse segundo modo permite a venda da droga também em pequenas porções. O preço da pedra é 5 ou 10 reais, dependendo o tamanho, e um farelo pode ser comprado por um valor que varia entre 50 centavos e dois reais.
Publicação
Tese: “Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack”
Autora: Taniele RuiOrientadora: Heloisa André PontesCoorientadora: Simone Miziara FrangellaUnidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)Financiamento: Fapesp
Autora: Taniele RuiOrientadora: Heloisa André PontesCoorientadora: Simone Miziara FrangellaUnidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)Financiamento: Fapesp
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Texto: PAULO CESAR NASCIMENTO
Fotos: Divulgação Wikipédia Antoninho Perri
Edição de Imagens: Diana Melo
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/582/nas-linhas-do-crack - 01 a 10/nov/2013
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