Segundo ele, "é na ação molecular, de base (as
múltiplas atividades pastorais de comunidades, movimentos e congregações
religiosas) que reside a força social da Igreja. Sem essa capilaridade pastoral,
os pronunciamentos do papa – e dos bispos, pode-se acrescentar – seriam mera
retórica. Se o papa e os bispos querem ter força moral, é hora de renunciar aos
poderes temporais. Ai reside um grande desafio ao sucessor de Bento
XVI".
Eis o artigo.
Eis o artigo.
A inesperada renúncia do Papa Bento
XVI abre o processo que elegerá seu sucessor no pontificado. Durante
séculos constou da cerimônia de inauguração do pontificado a tiara: ornamento de
cabeça com três coroas superpostas. De origem medieval, a tiara simboliza a
conjunção de três poderes. Ao ser coroado, o Papa recebia a tiara como símbolo
de tornar-se então “Pai de Príncipes e Reis, Pastor de toda a Terra e Vigário de
Jesus Cristo”. O último papa a colocá-la na cabeça foi Paulo
VI, que em 1963 a depositou aos pés do altar para não mais ser usada.
Desapareceu assim o antigo símbolo do poder temporal dos papas.
Acabou-se o símbolo, com certeza, mas não os
poderes temporais. Embora o papa não consagre chefes de Estado, não comande
exércitos nem dirija alguma corporação transnacional, ele continua a exercer
poderes que não são insignificantes. Sem alarde e sempre alegando servir a
Igreja, os últimos papas conservaram os principais poderes que a tradição
medieval lhe atribuiu.
Em primeiro lugar, o papa dispõe de uma
importante instituição financeira: o Instituto para as Obras de
Religião, que funciona como banco a serviço da Santa Sé. Por gozar do
privilégio de extraterritorialidade, essa instituição pode fazer aplicações de
capital em diferentes campos da economia sem submeter-se ao controle externo de
suas atividades. Isso dá ao papa considerável poder econômico, pois ainda que
viessem a faltar as contribuições voluntárias dos fiéis, os rendimentos dessas
aplicações financeiras permitiriam manter a Santa Sé em funcionamento por muito
tempo.
Outro poder oriundo da tradição medieval é a
condição de chefe de Estado. O Vaticano é um território minúsculo, comparado aos
antigos Estados Pontifícios, mas dá ao papa o comando sobre o corpo diplomático
da Santa Sé, que é tido como um dos mais competentes e eficientes do mundo.
Formados pela Pontifícia Academia Eclesiástica, os núncios
apostólicos e seus auxiliares representam a Santa Sé em quase todos os Países do
mundo e junto aos principais organismos internacionais. Sua função não é apenas
diplomática mas também eclesiástica, pois as nunciaturas são o veículo normal
das informações confidenciais entre a Secretaria de Estado e os bispos de um
país, e por elas passam as denúncias de irregularidades nas igrejas locais.
Independentemente da quantidade de católicos residentes no país, a representação
diplomática da Santa Sé tem status de embaixada e em muitos países o núncio
exerce a função de decano do corpo diplomático.
Outro poder de grande importância é a nomeação
de bispos. Também herança medieval, quando havia grande interferência de reis e
príncipes na escolha de bispos para dioceses situadas em áreas sob sua
jurisdição. Para proteger aquelas dioceses contra nomeações que atendessem antes
aos interesses dos governantes do que às necessidades pastorais da igreja local,
o papa reservou-se o direito de eleição dos bispos. Hoje em dia a laicidade do
Estado impede a interferência do poder político na escolha de bispos, e a
situação inverteu-se: em vez de salvaguardar o direito de a igreja local
escolher seu bispo, a escolha do candidato pelo papa volta-se contra ele. As
nomeações episcopais são regidas pela lógica da cúria romana e não pelas
necessidades da igreja local. Isso não significa, é claro, que a cúria romana
desconheça as igrejas locais, mas seu conhecimento depende da eficiência dos
canais de informação disponíveis. Além disso, como todo ocupante de cargo de
direção presta contas primeiramente a quem o elegeu, os bispos se sentem
obrigados a seguir a orientação vinda de Roma mesmo quando ela não condiz com a
realidade de sua igreja particular. E isso, sem dúvida, só faz aumentar a
centralização do poder romano.
Apontados esses três poderes papais, como três
coroas de uma tiara, cabe refletir sobre o significado da renúncia dos últimos
quatro papas ao uso da tiara. Renunciaram apenas a um ornamento bizarro ou a
certos poderes que hoje mais impedem do que favorecem a missão evangelizadora da
Igreja?
Os três poderes acima enunciados – poder
econômico, poder de Estado e poder eclesiástico – favorecem uma forma de
organização centralizada e piramidal, na qual a cúpula tem o controle de todas
as instâncias intermediárias até as bases. Esse modelo organizativo que moldou
também a burocracia estatal, o exército, e as empresas privadas desde o século
XIX vem sendo substituído por outro modelo, mais flexível e ágil: a organização
em rede, que tornou caduca a organização piramidal, hoje incapaz de assegurar
uma governança eficiente.
Não é, porém, por ter saído de moda que o
modelo centralizado e piramidal adotado pela Igreja católica romana deve ser
criticado, pois há coisas fora de moda que continuam boas – como o casamento
monogâmico, por exemplo. O poder centralizado e piramidal merece ser criticado é
porque dificulta o exercício da autoridade: a capacidade de mobilizar pessoas
apenas pela força moral de quem as lidera. Aí, sim, reside o fulcro da
questão.
Os clássicos da sociologia – E.
Durkheim, K. Marx e M. Weber –
perceberam que a força histórica e social da religião reside em sua capacidade
de moldar – pela convicção, não pela coerção – o comportamento humano e assim
formar o “clima moral” de uma sociedade. É na ação molecular, de base (as
múltiplas atividades pastorais de comunidades, movimentos e congregações
religiosas) que reside a força social da Igreja. Sem essa capilaridade pastoral,
os pronunciamentos do papa – e dos bispos, pode-se acrescentar – seriam mera
retórica. Se o papa e os bispos querem ter força moral, é hora de renunciar aos
poderes temporais. Ai reside um grande desafio ao sucessor de Bento
XVI.
Uma Igreja que anuncia e constroi o Reinado de
Deus no mundo atual – afinal esta é sua perene missão, reafirmada no Concílio Ecumênico de 1962-65 – deve
renunciar ao poder econômico, à diplomacia e à organização piramidal, para
tornar-se uma Igreja capaz de dialogar com o mundo como fazia Jesus: com
autoridade moral e testemunho de amor – preferencialmente aos pobres e às
pessoas socialmente desprotegidas. Que o próximo papa deixe a tiara no museu do
Vaticano e com ela os poderes temporais herdados dos tempos medievais. Será bom
para o Papa, para a Igreja católica e para o mundo todo.
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Fonte: IHU
on line, 12/02/2013
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