Renato Janine
Ribeiro*
"O
Mundo que os Escravos Criaram", "O Mundo que os Senhores de Escravos Criaram"
foram dois livros seminais na historiografia dos Estados Unidos; neles me
inspiro para este título. O Facebook criou um novo mundo? Comecemos por uma das
principais discussões dos últimos cem anos: rupturas tecnológicas causam
mudanças sociais? Pensemos na invenção da imprensa, da pólvora, na descoberta
das vacinas e da penicilina, na invenção da pílula anticoncepcional, da internet
e do Facebook. Em todos os casos houve consequências sociais relevantes.
Imprensa e internet mudaram o tamanho das relações humanas. A pólvora
revolucionou a guerra. A vacina e a penicilina salvaram numerosas vidas. A
pílula ajudou a libertação sexual. Mas essas invenções causaram as mudanças, ou
"apenas" amplificaram seu impacto? Uma invenção basta para mudar o mundo, ou só
emplaca quando a sociedade está pronta? Há exemplos para o sim e para o
não.
Não: a pólvora. Os chineses a usaram por
milhares de anos, mas em fogos de artifício - para beleza e diversão, não para a
morte e a guerra. Somente se torna arma na Europa quase moderna. Sim: vários
progressos da medicina, como a penicilina. E uma posição intermediária, sim, mas
não sozinha: a saúde pública. A queda fantástica da mortalidade infantil no
século XX e a forte redução na letalidade das doenças devem muito ao saneamento
básico, que por sua vez foi mais determinado por movimentos sociais e pela
ascensão das classes pobres, do que por invenções de laboratório. Aparentemente,
não há uma resposta única para a pergunta. Mas há uma tendência do pensamento
conservador a depreciar as causas sociais e a enfatizar as invenções técnicas.
Estou convicto de que é preciso analisar caso a caso, o que leva a uma resposta
matizada, mas com maior acento nos determinantes sociais. Estes não são
"causas", mas oportunidades e caixas de ressonância.
Como fica o Facebook nesse quadro? O mundo das
redes sociais é muito diferente de tudo o que houve antes. Realiza os 15 minutos
de fama que Andy Warhol predizia para todos nós. Pessoalmente, desde que eclodiu
a internet, sonhei que ela criasse uma nova ágora, a maior da história. A ágora
era a praça em que se juntavam os cidadãos, na Atenas antiga, para decidir sobre
assuntos públicos. Sir Moses Finley diz que essa assembleia de todos se reunia
40 vezes por ano, o que deve ser um recorde inigualado de interesse popular
pelos assuntos políticos. Mas há algo parecido no Facebook? Em dois anos de
frequentação constante, só notei a degradação do debate. Li há poucas semanas
que o FB teria aperfeiçoado (sic) o algoritmo que escolhe o que você vê no seu
"feed de notícias": a rede destacaria, na sua página, posts de quem tem gostos
ou valores parecidos. Deve ser por isso que nunca vejo posts de homófobos ou de
fascistas; mas, pela mesma razão, recebo poucos posts de quem discorda de mim na
política ou na sociedade. Isso é lamentável: o contato com a diferença se reduz
a pouco.
Pode ser então que a tecnologia até refreie o
debate. Ela abriu um grande espaço de discussão com o Facebook, mas o fechou ao
só juntar os parecidos. Mas isso resulta de uma invenção técnica, ou de uma
demanda social? Porque nosso tempo é marcado por um forte narcisismo ("Faces,
estou na praia!"), a vontade de encontrar almas gêmeas ou mesmo clones, em suma,
a indisposição à diferença, ao diálogo, ao debate. Em particular no Brasil, onde
a convicção democrática do respeito a quem pensa diferente de nós quase não
existe.
Porque, e este é o segundo ponto, mesmo ali
onde a tecnologia não bloqueia o diálogo, este não acontece. Parte significativa
dos comentários que leio são redundantes em relação ao que está dito no post. O
pensamento complexo encontra tão pouco espaço no FB quanto em qualquer outro
lugar - e menos que na imprensa, que no Brasil já não é exemplar pela disposição
a mostrar o outro lado, a promover o diálogo. No caso dos jornais, não falo do
"outro lado" no sentido banal, como telefonar a alguém para saber sua versão de
um fato. Penso, sim, na possibilidade de introduzir, dentro do próprio
pensamento, o seu contrário. O que temos no Brasil é, na imprensa, um discurso
dominante de oposição ao governo e à esquerda, e nos blogs de esquerda o
contrário exato disso. Há um enfrentamento externo de opiniões, mas não a
compreensão de que o pensamento deve ser, em seu próprio interior, marcado pela
dúvida e o autoquestionamento. Este é um traço da cultura política brasileira,
ou da ausência de tal cultura; nosso déficit democrático, para o qual não vejo
chance de mudança a curto prazo.
O virtual será então uma lupa sobre o real, uma
ampliação do que acontece na realidade, no mundo da presença? Não é só isso; ele
retira gente da solidão; para os perseguidos ou os isolados, é um bálsamo,
porque multiplica seus amigos e associados. Mas ele evidencia também nossa
deficiência democrática, que é difícil de sanar, justamente porque a solução não
depende da tecnologia, mas da sociedade.
------------------ * Renato Janine Ribeiro, colunista do Valor, é professor de filosofia na Universidade de São Paulo (USP)
Fonte: http://www.valor.com.br/cultura/3000242/o-mundo-que-o-facebook-criou#ixzz2KOWkKlFv
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