segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

" Conviver - No lugar do outro

 

Sofrendo no trânsito, passando-se por mendigo, convivendo na favela, experimentando os hábitos da filha... Quem se dispõe a entender como se sentem as pessoas com quem convive aprende grandes lições
Texto: Jeanne Callegari // Ilustração: O Silva // Foto: Laura Sobenes
 
No lugar do outro
AumentarDiminuir
Fazia 15 anos que Ademilton Pereira Lima, de 50 anos, não andava de bicicleta. Naquele domingo ensolarado, em junho de 2009, ele estava apreensivo: iria encarar 10 quilômetros sobre a magrela. Com ele estavam 80 colegas de profissão, todos motoristas de ônibus, função que Ademilton desempenha há 25 anos.

O passeio foi uma iniciativa da empresa que coordena o sistema de ônibus em São Paulo, a SPTrans, com o objetivo de conscientizar os motoristas sobre a importância de respeitar os ciclistas no trânsito. “Mesmo pedalando num grupo grande, num domingo, já nos sentíamos apreensivos ao ouvir o barulho dos carros. No trânsito do dia a dia, então, é muito mais difícil”, diz Ademilton, ao lembrar da experiência. Hoje, ele toma mais cuidado quando passa por alguém andando de bicicleta, pois sabe como é ser a pessoa no veículo mais frágil. “Passei a respeitar mais, a ver que é um meio de transporte como os outros, com o mesmo direito de estar na rua”, afirma.

Ao deixar de lado, por um dia, sua posição de motorista para assumir o papel de ciclista, Ademilton praticou uma atividade fundamental para a convivência: a arte de se colocar no lugar do outro, chamada pelos psicólogos de empatia. “É um exercício que todos deveriam fazer sempre, em relação ao namorado, ao marido, aos pais, aos amigos”, diz Antônio Carlos Amador Pereira, professor de psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Pensar no que o outro está sentido e nos perguntar o que faríamos se estivéssemos no lugar dele são a chave para facilitar o diálogo”, completa.

A técnica é tão eficaz para resolver conflitos que costuma ser utilizada nas sessões de psicodrama – tipo de psicoterapia que se baseia na representação dramática. Um filho que tenha problemas de relacionamento em casa, por exemplo, pode ser encorajado a interpretar o pai, como um personagem teatral, para melhor entender o que se passa na cabeça do familiar. “Ao trocar de papel com o outro, percebemos como ele vai se sentir com nossas atitudes. Entendemos que aquilo que fazemos ou dizemos pode magoar os outros, causar reações que a gente nem tinha previsto”, afirma a psiquiatra e especialista em psicodrama Elizabeth Sene-Costa.

Nem bandido, nem assassino

Ao nos permitir enxergar as pessoas com quem interagimos e entender as consequências de nossas ações – como aconteceu com Ademilton –, a prática de se colocar no lugar do outro também possibilita derrubar os mais intrincados preconceitos. Charles Martins do Nascimento, de 18 anos, morador da favela da Vila Ventosa, de Belo Horizonte, e o sargento da polícia Cássio Johnny Tenório, 32, sentiram isso. Na opinião de Charles, todo policial era corrupto e violento. Para Johnny, jovens de bairros pobres, com seus cabelos compridos e piercings, eram o tipo de elemento a sofrer uma abordagem policial. Hoje, porém, ambos pensam de modo diferente.

Charles e Johnny reviram suas opiniões após entrar para o programa Juventude e Polícia, uma iniciativa da ONG AfroReggae e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), em parceria com a Polícia Militar de Minas Gerais. Por meio de oficinas culturais oferecidas a jovens moradores de favelas e ministradas pelos policiais que fazem a ronda nesses bairros, o projeto tem aproximado os dois grupos com sucesso – o que se reflete em significativa redução dos índices de criminalidade, que caíram em até 50%.

A iniciativa começou em 2004. Inicialmente, os policiais participaram de oficinas com instrutores do AfroReggae, nas quais aprenderam dança de rua, percussão, grafite e teatro. Num segundo passo, eles ensinaram essas habilidades aos jovens das favelas.
No pico do inverno, o publicitário Douglas Téo se misturou
aos moradores de rua. Teve de beber para se aquecer,
foi olhado com desprezo, não pôde entrar em igrejas:
“A experiência mudou minha visão de mundo”


Johnny não queria participar. “Olhei para aqueles jovens e achei que não tinha nada a ver a polícia se envolver com eles”, conta. Pressionado pelos superiores, seguiu em frente. Em 2005, tornou-se instrutor. E desde então não quis saber de abandonar o projeto. “Após a quebra da barreira, os professores se tornaram referência para os jovens. Hoje participo da vida deles, conheço as famílias. Tenho uma relação de afeto com meus alunos”, conta.

O início de Charles também foi relutante: “Os policiais achavam que todo mundo que morava em favela era bandido”, conta. Matriculado no projeto pela diretora do colégio onde estuda, aos poucos o jovem se empolgou com a novidade. “Alguns policiais passaram a ver a gente de outro jeito. E eu também mudei minha opinião. Vi que tem muitas pessoas boas lá dentro”, explica. Hoje, Charles é instrutor das oficinas de percussão – técnica que aprendeu com Johnny – e tem o grupo como uma família. “O sargento Johnny acabou se tornando quase um pai para mim, e também para todo o pessoal da oficina. A cada dia, a amizade se fortalece”, conta.

O programa Juventude e Polícia exemplifica um elemento fundamental à empatia: a reciprocidade. “Para compreendermos a outra pessoa, é preciso que ela se esforce para nos entender também. Tem de ser uma via de mão dupla”, afirma o psicólogo Antônio. “Fazendo isso, aprendemos tanto sobre o outro quanto sobre nós mesmos”, completa o especialista.

Dor das ruas na pele

Uma curiosa iniciativa própria rendeu um aprendizado transformador ao publicitário Douglas Téo, de 25 anos. Para realizar um projeto artístico pessoal, que em breve deve originar um livro de fotografias, Douglas vestiu uma camiseta surrada e um short, no pico do inverno paulistano, e se misturou à população de rua da metrópole. Em três dias, passou horas circulando pelas sarjetas como maltrapilho, enquanto um fotógrafo registrava tudo de longe.

A primeira diferença que Douglas percebeu foi na forma como as pessoas o encaravam. “Algumas me miravam com extrema piedade. Outras fingiam que eu não existia. E havia também quem deixasse claro que minha presença era um incômodo. Como uma senhora no ponto de ônibus: quando me sentei ao seu lado, ela me deu as costas”, conta.

No segundo dia do ensaio, a chuva tornou o frio mais intenso. Para aguentar a temperatura, Douglas bebeu vários copos de vinho. “Aí entendi por que muitos moradores de rua têm problemas de alcoolismo: é uma defesa, uma forma de aguentar a situação em que vivem.” Nesse dia, o publicitário tentou entrar em uma igreja, mas foi impedido pelos seguranças, que chegaram a chamar a polícia. O mesmo já havia acontecido em outro templo. “Eu pensei: se nas igrejas, que deveriam supostamente acolher a todos sem preconceito, é assim, imagine no resto da cidade.”

Sem mais suportar o frio, Douglas foi levado para casa por amigos que estavam ajudando no registro das imagens. Quando ligou o chuveiro e sentiu a água quente lavando a sujeira e esquentando a pele gelada, desatou a chorar. “Eu só pensava que eu estava ali, de volta ao conforto, enquanto os moradores de rua continuavam lá, sofrendo frio e fome”, lembra. A experiência foi tão marcante que Douglas resolveu incluir em sua rotina alguma ação em auxílio aos sem-teto. Tornou-se voluntário da revista Ocas, editada pela ONG Organização Civil de Ação Social e comercializada por moradores de rua, que ficam com o lucro da venda. “A experiência mudou minha visão. Estou muito mais atento às pessoas que encontro pelo caminho. Quando posso, ajudo com dinheiro, café, comida, roupas e, principalmente, atenção.”

Lições do almoço

Mas não precisamos viver uma situação tão extrema quanto Douglas para exercitarmos a empatia. Diariamente, a necessidade de compreensão está bem perto de nós – dentro de casa, por exemplo. Para Ana Lúcia Queiroz, de 44 anos, de São Paulo, o caso foi exatamente assim. Há alguns meses, sua filha Tamara, de 25 anos, começou a frequentar aulas de ioga e, aos poucos, foi deixando de comer carne. Quando soube que a filha havia se tornado vegetariana, Ana Lúcia não gostou nem um pouco. “Fiquei brava, com medo de que ela tivesse uma anemia”, conta.

Devagar, Tamara começou a mostrar algumas receitas para a mãe. Explicou que havia substituições saudáveis, e que ela não ficaria doente se comesse de forma variada. Ainda desconfiada, Ana Lúcia foi experimentando as receitas. Começou a gostar. Um dia, ela revelou a Tamara: “Estou há uma semana sem comer carne”. A filha abriu um sorriso de orelha a orelha: “Não esperava convencer o pessoal de casa a virar vegetariano. Mas conseguir a aceitação foi ótimo”. Hoje, a mãe raramente come carne.

Ana Lúcia teve dificuldade em se adaptar, mas, quando deu uma chance à nova maneira de pensar e agir da filha, começou a perceber vantagens. “Aprendi a apreciar o sabor mais suave dos outros alimentos e me sinto melhor, mais leve”, conta. Os novos hábitos acabaram aproximando mãe e filha, que hoje trocam receitas diferentes e experimentam juntas temperos e grãos. “Passamos horas na cozinha batendo papo”, diz Tamara.

Da mesma forma que Ademilton, Johnny, Charles e Douglas, Ana Lúcia aprendeu como vivenciar novos pontos de vista pode ser transformador, nos tornando pessoas mais tolerantes e conscientes. Seja em relação a estranhos, pessoas próximas, seja a nós mesmos. “Tem que se sentar, conversar, ouvir, conhecer antes de atirar a primeira pedra. O diálogo é a melhor coisa”, ensina.

Nenhum comentário:

Postar um comentário