Ano de 1965. Estava em Princeton
fazendo um doutorado, fugido dos militares e dos poderosos da Igreja
Presbiteriana do Brasil. Eram farinha do mesmo saco.
A maioria dos meus colegas de doutoramento
fumava cachimbo. O cachimbo tem um charme intelectual, combina com sabedoria e
filosofia... Eu gostava do ar perfumado das salas onde tínhamos nossas
discussões. Respirava fundo. A fumaça dos cachimbos me fazia lembrar as cozinhas
mineiras de fogo e fumaça. Mas nunca me passou pela cabeça fumar cachimbo.
Minha relação com a Igreja Presbiteriana da
qual eu era pastor estava podre. Ela se aliara aos militares e estava ansiosa
por mostrar subserviência entregando aos carrascos seus filhos subversivos.
Instalara-se uma caça às bruxas. Eu era uma das bruxas. Tive de fugir para não
ser queimado.
Em Princeton eu estava seguro. Mas já nada mais
tinha a ver com a igreja. Eu a desprezava, desprezava os seus líderes,
desprezava seu pensamento.
Foi então que, passando em frente a uma tabacaria vi cachimbos na vitrine. Eles me seduziram.
Foi então que, passando em frente a uma tabacaria vi cachimbos na vitrine. Eles me seduziram.
Um homem fumando, um homem pensando... Tantos,
nas formas mais variadas... Entrei e comprei um cachimbo com todos os apetrechos
que o seguem. Há de se ter uma pequena caixa de ferramentas para fumar
cachimbo... Lembro-me do nome do fumo: Balkan Sobranie, que vinha numa lata
branca e tinha um perfume delicioso. O dr. Julius, que iria morrer de melanoma
no romance A Cura de Schopenhauer, também fumava Balkan Sobranie. Ficamos
irmãos. Eu, feito de carne e osso e ele feito de imaginação. Aí o ser e o não
ser se reuniram e fumaram o fumo perfumado.
Mas o que é que um cachimbo tem a ver com
religião?
Karl Barth, professor na Suíça, lá pelos idos
dos anos cinquenta, era considerado o teólogo mais famoso do mundo. Pelo menos
era o que escrevia o maior número de livros... Alguns pastores brasileiros, em
excursão pela Europa, resolveram visita-lo, só pelo prazer de poder dizer:
“Encontrei-me com a fera.”
O teólogo, desejando ser gentil com os
visitantes, abriu uma caixa de charutos e os ofereceu. Os pastores estremeceram.
Protestantes brasileiros são puros, não fumam, não têm vícios, fumo é coisa do
demônio... Um deles, o porta-voz do grupo, declinou do oferecimento e explicou:
“Nós, pastores protestantes do Brasil, não fumamos...” Barth sorriu, acendeu o
seu charuto, fez rodinha de fumaça, deu uma baforada e disse com humor: “Não
importa. No céu há lugar até para os que não fumam...”
A fachada do protestantismo brasileiro se
resumia em abstinência dos “vícios” sociais. Assim, a despeito do fato de Lutero
e Melanchton serem grandes apreciadores de cerveja; a despeito do fato de
Calvino receber parte do seu salário de pastor em litros de vinho; a despeito de
a Escócia, berço do presbiterianismo, ser também o berço dos maravilhosos
uísques; a despeito do fato de grandes teólogos protestantes se deleitarem com
charutos, cachimbos e cigarros; a despeito do fato de Lutero, nosso pai, ter
feito uma declaração escandalosa aconselhando, numa carta a Mellanchton, ousadia
no pecar — “Seja um pecador e peque ousadamente” (Pecca fortiter, sed crede
fortius) —, por aqui foi decretado que os protestantes deveriam ser mais santos
que o próprio Deus...
Comprar um cachimbo e fumar foi uma forma de
dizer a todos que eu era um herege...
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Escritor. Teólogo. Educador.
Fonte:
http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/02/24
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