Contardo Calligaris*
A polidez excessiva é diretamente proporcional à violência
do desejo que ela mascara e contém
Um pré-adolescente me contou que ele
sempre deixa as mulheres passarem primeiro nas portas, nas catracas e em todos
os limiares da circulação social, segundo ele foi instruído pelos pais e pelos
avós.
No entanto, esse gesto cavalheiro é acompanhado
por um pensamento que ele não consegue evitar e que, um dia, ele receia, poderia
explodir como um grito indomável, impossível de ser mais uma vez
reprimido.
Deixo você imaginar as consequências que esse
grito teria, pois, a cada vez que ele, nobremente, estende a mão para convidar
uma mulher (moça ou idosa, tanto faz) a passar antes dele, o que insiste na sua
mente é a frase: "Empina a bunda, sua vaca!".
Não acho estranho: as boas maneiras existem,
provavelmente, para reprimir pensamentos, condutas e desejos, que, se liberados,
tornariam desagradável a nossa convivência social.
Não conheço estudos sobre o costume de deixar
as mulheres passarem primeiro. Algumas más línguas dizem que nasceu como uma
precaução masculina, caso houvesse assassinos esperando o homem do outro lado da
porta. Outras más línguas afirmam que era um jeito de os homens controlarem as
mulheres, pois, se elas fossem autorizadas a ficar atrás, fugiriam na primeira
ocasião.
No que me toca, aprendi que a mulher deve
passar sempre antes do homem, salvo na descida de uma escada, quando o homem,
indo na frente, tapa a perspectiva inconveniente de quem, a partir do piso
inferior, procurasse olhar por baixo da saia da mulher. Esse deve ser um
preceito recente, de quando as saias se encurtaram, mas a própria regra de
deixar a mulher passar primeiro tampouco é antiga.
Seja como for, há uma distância notável entre,
no meio de um saque, jogar a mulher em cima do ombro e levá-la embora, para
estuprá-la mais tarde, com calma (quem sabe, entre amigos) e, no extremo oposto,
abrir a porta para a mulher passar primeiro. Como ilustra a dificuldade do jovem
que mencionei, a polidez excessiva é diretamente proporcional à violência do
desejo que ela mascara e contém.
Em suma, as regras de boas maneiras podem
parecer risíveis e são quase sempre hipócritas, mas, justamente por isso, elas
são úteis e necessárias --porque não poderíamos conviver sem repressão e
hipocrisia.
Norbert Elias escreveu "O Processo Civilizador"
(Zahar) em 1939. Pobre, exilado em Londres no momento da maior barbárie do
século 20, Elias procurou e encontrou a origem da subjetividade e da liberdade
modernas logo nos tratados de boas maneiras.
Isso porque as regras de etiqueta nos ensinam a
domesticar os impulsos mais perigosos e, mais ainda, porque a preocupação com o
olhar do vizinho de mesa nos obriga a sermos minimamente graciosos.
Chato? Talvez. Mas a novidade moderna é que a
elegância é uma qualidade social permitida a todos --basta querer. Se o
requisito é a elegância (e não a nobreza, que não depende da gente), qualquer um
pode ter o que precisa para ser convidado a qualquer jantar.
Engraçado: criticamos as aparências e a
etiqueta como se fossem leviandades, sem pensar que seu triunfo nos libertou das
barreiras intransponíveis de uma divisão social decidida pelo berço no qual cada
um tinha nascido.
Parêntese: estou lendo "Consider the Fork: A
History of How We Cook and Eat" (pense no garfo: uma história de como cozinhamos
e comemos, Basic Books), de Bee Wilson, que conta muito bem como fomos
transformados pela evolução dos costumes de cozinha e de mesa.
Enfim, estava no meio dessas reflexões quando,
sábado passado, fui assistir a "As Regras da Arte de Bem Viver na Sociedade
Moderna", de Jean-Luc Lagarce, no Sesc Ipiranga, em São Paulo (imperdível, e
atenção: só nos próximos três sábados, às 19h30). A atuação de Lorena da Silva é
perfeita. E o texto, francamente engraçado, é uma pérola de inteligência.
Lagarce nos lembra os usos e costumes dos
rituais da vida, do nascimento até a morte, passando por batismo, casamento,
bodas de prata etc. Ele escreveu "As Regras" em 1993, dois anos antes de morrer
de complicações relacionadas à Aids; pelo destino que o espreitava, ele poderia
ter sido sarcástico com a suposta "frivolidade" de nossos rituais. Mas ele tomou
outro caminho: ele fez, sim, que as regras básicas de nossa etiqueta nos
parecessem estranhas e eventualmente hipócritas, mas sem que a gente perdesse de
vista que elas são a própria trama de um mundo que amamos --e do qual ele já
devia sentir saudade.
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*Contardo Calligaris, italiano, é
psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais
na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da
Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do
espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão
impressa de "Ilustrada".
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/07/02/2013
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