Há
um novo tipo de idiotia na praça. Ela atinge muita gente, mas nascidos mais
recentemente, principalmente no Brasil, estão mais sujeitos a tal deterioração
do entendimento. Trata-se de uma disfunção cerebral que eu chamaria de “ILGLD”:
Inabilidade para a Leitura de Gêneros Literários Distintos.
O indivíduo atingido por esse tipo de idiotia
não necessariamente é desinformado. Pode ser, inclusive, que em algumas
atividades humanas ele se mostre até inteligente. Todavia, ele é dono de uma
burrice muito específica: ele é aquele garoto que por ter ouvido do professor de
cursinho que “Machado de Assis fez uma crítica ao positivismo com o seu conto O
Alienista”, lê o conto e então, citando (citar é fácil!) Deleuze e outros
filósofos de modinha carioca, conclui do alto de seus 28 ou 38 ou 42 anos:
“Machado não detectou os problemas todos do positivismo”. Desse modo, o grande
Machado de Assis, nosso maior escritor, é posto de lado. Faltou a Machado muita
coisa, diz o nosso garoto.
Essa idiotia aparece em graus variados, mas a
característica principal do comportamento de quem está sob tal patologia é este
aí: ele não consegue entender o gênero literário “conto” ou “romance” uma vez
que ele aprendeu já um outro gênero literário, no caso, o da (má) “sociologia da
literatura” ou coisa parecida. Mutatis mutandis trata-se do mesmo caso
daquele indivíduo que se tornou ateu aprendendo a criticar a Bíblia
porque nela há inverdades factuais ou “incoerência lógica” (ele se acha
diferente do leitor fundamentalista!). Também nesse rol aparecem os que não
conseguem compreender que a filosofia e a ciência são, em certo sentido, gêneros
literários e, enfim, compõem uma tradição de leitura e escrita. A filosofia é
uma tradição literária inventada por Platão e a ciência moderna uma outra que
deve muito a Galileu.
Nesse mesmo rol de vítimas dessa idiotia
específica, estão os que se defrontam com o cinema e não conseguem perceber que
o cinema, ele próprio, é um gênero literário e que nele há subgêneros. Nesse
campo de vítimas da nova patologia estão os que dizem “nossa, Tarantino é muito
sanguinolento!”, mas também estão os que, vendo “Django Livre”, disseram: “ah,
se é para ver Western Spaguetti, um filme B, eu veria os próprios”. Assim, a
idiotia é uma doença que pode pegar os que se acham sofisticados e que, por
profissão, deveriam ser mesmo.
A filosofia que faço tem uma preocupação, ainda
que lateral, com essa doença. A ideia que tenho, de sair da filosofia crítica
para abraçar o pragmatismo e, com ele, vir construindo esse meu modo próprio de
filosofar, que é resumido na frase “desbanalização do banal”, tem de se
preocupar com tal idiotia. É que o meu modo de filosofar implica em ampliar
narrativas sobre questões que se tornaram banais. A ampliação de narrativas e
perspectivas exige que se possa transitar entre gêneros literários, e aí entra
uma necessidade de fazer esse trânsito reconhecendo as especificidades de cada
campo.
Dou alguns outros exemplos. Vamos ao leitor de
Nelson Rodrigues que o lê acreditando literalmente na frase “a vida como ela é”.
Ou então aquele leitor que escuta o professor de filosofia política dizer que
Hobbes e Maquiavel, diferentemente de Rousseau, são autores “realistas”, e então
passa a acreditar que os dois primeiros nos contam o real e Rousseau, “tadinho”,
era ingênuo. Ou pior ainda, quando a patologia já está em estado avançado: “Ao
dizer que o homem é o lobo do homem”, Hobbes nos mostrou verdadeiramente quem é
o homem, o que é o homem, enquanto que Rousseau nos quis enganar ao dizer que “o
homem nasce bom”.
O próprio não entendimento da palavra “utopia”
já mostra, também, mais uma característica da idiotia. O rapaz diz: “isso é meio
utópico”, e com tal frase quer dizer que o descrito não se ligou ao que teria de
se ligar, ou seja, ao Nelson Rodrigues, que ao mostrar que um homem pode dar
umas boas bolachas na mulher que ama estaria representando muito mais
fidedignamente o homem que aquele que descreve uma sociedade em que nenhum homem
daria uma bolacha em uma mulher.
Richard Rorty, um filósofo amigo e por quem
tenho apreço não só como um renovador da filosofia pragmatista, culpou o
platonismo por muito desse tipo de idiotia. Ele não teve a pretensão, é claro,
de por nas costas de Platão os casos patológicos. Mas, em certo sentido, ele
acabou fazendo isso. Nisso, foi justo com o platonismo e injusto com Platão. O
criador da filosofia, ele próprio, foi um brigador contra si mesmo. Ele criou
tudo que se podia criar em termos de idolatria de um mundo substancial perene.
Com ele nasceram perguntas que fomentam a idiotia, essas que pedem que
encontremos a essência da sociedade, do homem, da natureza etc. Mas, também com
ele – e isso é o esquecido – nasceram as revisões dessa posição, e isso sempre
que uma tal assunção fazia água. Uma boa parte da crítica aristotélica a Platão
já está nas obras de Platão, às vezes até mais desenvolvidas que aquilo que
Aristóteles nos apresenta.
Platão perguntou por essências imutáveis e
acreditou nelas, ou seja, no chamado “mundo das formas”. Nisso, ele forçou a
filosofia a ser uma narrativa que viria cobrir todas as outras, uma narrativa
que seria a base de todas as outras, pois esta sim falaria do imutável em um
mundo mutável. A filosofia seria uma maneira de vencer as cosmologias de
Heráclito e Parmênides. Não raro, alguns estudantes de filosofia se tornam
professores de filosofia e, por conta de um platonismo meio que esquisito, caem
vítimas dessa idiotia, a ILGLD. Mas já tenho visto gente que nunca leu filosofia
com essa doença. É uma doença que talvez tenha a ver com a fisiologia de cada
um. Há alguns que são predispostos mesmo a pular de gênero em gênero e não
perceber que se está viajando de país em país, e que o idioma está mudando, e
que não há um idioma básico que unifique todos.
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* Prof.
Universitário. Filósofo.
Fonte:
http://ghiraldelli.pro.br/2013/02/uma-nova-idiotia/
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