O ser humano, ao lembrar-se de algo,
lembra-se de uma história. Não existe uma evocação abstrata, ou de um fato
instantâneo, congelado no tempo. Nesses casos, ocorre uma operação mental em que
um fato se sucede a outro, numa se-quência que, quando o contamos a outrem,
procuramos dar um andamento mais ou menos lógico. Contamos uma história, enfim;
e ao falarmos em histórias, caímos em cheio no terreno da literatura, que, desde
sempre, teve a função de imitar a vida – para aceitarmos a ideia tão cara a
Aristóteles. Isso é o trivial para alguém quem costuma percorrer os caminhos da
cultura. O problema, porém, é quando a literatura abandona essa linearidade e
põe-se a sugerir transgressões que, levadas ao extremo, podem instaurar uma
perturbadora intransitividade. “Não entendo nada desse livro” – eis um discurso
fácil e totalizador, capaz de comprometer a própria existência da obra de arte.
Tal como se apresenta, esse raciocínio, embora raso, pode corresponder a uma
forma cartesiana de entender o mundo, e como tal, tem seu valor. Nossa verdade
interior, porém, em que pese a busca da linearidade, não é lógica e, nas
evocações, há avanços e recuos, há desvios – hiperlinks involuntários – que, na
maioria das vezes, tornam-se mais importantes do que a história. Esse é um
procedimento nem sempre visível e consciente, e fascinamo-nos com os rumos de
nossa capacidade evocadora.
A questão é quando isso vem representado numa obra
literária a qual “não deveria” enveredar por esses caminhos escuros da mente. A
literatura, nessa disputa sem quartel, acaba por ser a responsável pela sua
própria incongruência pois, em vez de organizar o universo, acaba por
desconstituí-lo e desautorizá-lo. Cabe ao leitor aceitar sua perturbação pessoal
e admitir que, fosse para representar com fidelidade a vida, a literatura
estaria incorrendo no erro julgar que a vida toda é coerente, quando sabemos que
não o é. Que o diga a teoria do caos. Para arrematar essa conversa algo
esotérica: a literatura não é culpada de suas assimétricas construções; talvez
devêssemos indigitar a vida por não se comportar como nós desejamos. A
literatura, nesse patamar reflexivo, nem é tão inovadora; a vida, sim, é
inovadora. Queiramos ou não. Isso pode ser um anátema, sim, mas também pode ser
um imenso consolo. O resto, como diz jovem príncipe da Dinamarca, é o
silêncio.
--------------
* Escritor.
Fonte: ZH on line, 11/02/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário