Ser humano é não poder saber. Quem nasce
onça
sabe que morre onça. Quem nasce homem
sabe que morre onça. Quem nasce homem
não sabe como morre.
Francis Duval
Houve um tempo em que eu convidava pessoas para
palestrar nas instituições em que trabalhava e eventualmente dirigia. Fiz muitas
vezes o papel de anfitrião no Museu Nacional e quando ensinei nos Estados
Unidos.
A distância imposta pela língua inglesa e por
uma audiência pontual e com um comportamento exemplar sempre causava nervosismo
nos apresentadores latino-americanos, os quais, como norma, iam perdendo o
inglês irreprochável usado no início da conferência e, na medida em que a
palestra se desenrolava, acabavam falando com um pitoresco sotaque espanhol ou
luso-brasileiro.
Observei isso muitas vezes e eu mesmo sofri
dessa agonia quando tive como ouvintes antropólogos famosos, que eu estudava até
as pestanas queimarem e admirava extremamente. Tais disposições psicocoloniais
promoviam um nervosismo geral, que se manifestava na pronúncia, no esquecimento
das palavras a serem usadas em inglês (ou francês) e, em alguns casos, em
acessos de uma indesejável tremura nas mãos, a ponto de impedir a leitura da
conferência ou, como se diz metonicamente em inglês, do "paper".
Lembro-me de um caso exemplar. Um dos meus
convidados brasileiros para proferir uma aula em Notre Dame tremia tanto que
desistiu da leitura, abandonou as notas e passou a falar de improviso,
gaguejando assustadoramente. Mas a despeito dessas agruras, as ideias que
apresentou sobre o tema A Impossibilidade Cultural do Conceito de Cultura - tão
a gosto da antropologia social, essa disciplina que adora messianismos e carisma
-, na palestra despertou uma apaixonada discussão abafada tarde da noite, num
bar.
Ali, num ambiente mais relaxado, ele me
perguntou se tudo havia corrido bem. Disse-lhe que sim, que o encontro havia
sido um sucesso, exceto pelo tremor de suas mãos. "Tremor? Que tremor?", reagiu
meu colega em voz alta, visivelmente irritado. "Não houve tremor nenhum!",
exclamou, encerrando o assunto e pegando com mão firme um pesado caneco de
cerveja.
Assustou-me a inconsciência. Esse não saber
periférico (senão não teria havido reação) que faz parte de todos os seres
vivos, atacando sobremaneira os humanos. Essas vítimas perenes do fazer sem
querer ou, melhor ainda, do fazer e não poder saber. Passei pela mesma coisa
inúmeras vezes e talvez os homens conheçam mais claramente o vexame de ter um
pedaço do corpo fora de controle do que as mulheres, mas o fato é que há coisas
que não sabemos.
Ou que não podemos saber. A vida está em outro
lugar tanto quanto o tremor do meu colega. Se soubesse como seria minha vida
quando tinha 20 e poucos anos não teria vivido, diz-me um velho companheiro das
trincheiras magras. Viver é muito perigoso, afirmava Guimarães Rosa. É a
inocência do não saber que permite viver a vida, digo eu.
A negação faz parte da vida humana. Um leão não
dorme se pressente uma ameaça, mas um homem dorme feliz mesmo sabendo que cada
noite bem dormida o aproxima da morte. A consciência foca em alguma coisa com
intensidade e, com a mesma força, reduz tudo o mais a um resíduo a ser
esquecido. O foco tem como contrapartida a alienação. Ademais, a vida contém a
ignorância que vira destino ou carma justamente porque ela tem um fim. O mundo
continua, mas eu sei que vou partir. Quando os sinais se invertem surge um sonho
de onipotência próximo da loucura dos crentes.
A consciência do início e do fim atrapalha, mas
sem ela não teríamos a obrigação de inventar biografias e de não poder ver
certas coisas. O final fabrica a origem.
Num país moderno, as estatísticas surgem como
tremores não convidados. O governo diz uma coisa, mas os números, que são prova
do nosso mais concreto inconsciente comunitário, revelam uma outra. Os acusados
proclamam suas inocências. Ninguém, nem mesmo aqueles com um faro mais possante
do que o de um perdigueiro, sem o qual não se chega às altas esferas do poder,
diz que sabia. Mas quando a promotoria reúne os fatos e constrói a narrativa
acusatória, temos um manual de crimes.
o "pibinho" de dona Dilma, a gerentona; o mensalão da casta petista; e o caso de Rosemary Noronha. Em cada um desses episódios, algo de fora despe algo de dentro. Há um hiato desagradável e, nos casos em pauta, surpreendente, a se julgar pelo quadro de valores de um partido que ia mudar o Brasil e liquidar a corrupção.
Na democracia, a imprensa faz esse papel. Como os tremores e as meias furadas, ela coloca em foco aquilo que os projetos de poder e o populismo seboso escondem. O "fato" é a pista. É o objeto fora do lugar que leva ao criminoso, porque o bandido tomou todas as precauções, mas mesmo nas consciências mais abrangentes sempre falta algo. O criminoso usa luvas, mas não olha onde pisa. O conferencista controlava tudo, menos as mãos que tremiam orgulhosamente como uma bandeira nacional acariciada pelo vento.
Surgem então
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Antropólogo. Escritor.
Fonte:
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,16/01/2013
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