O mal: uma difícil questão
José Tolentino
Mendonça*
A Cabala judaica ensina que o mal surgiu
no mundo quando um escriba preguiçoso se equivocou na escuta e transcreveu
erradamente uma letra da Escritura Sagrada. Um rabino comentador da Cabala,
Soloviel, afirma:
«As duas vozes, aquela de Deus
que não devemos nomear e a voz do mal, do mal inominável, são terrivelmente
semelhantes. A diferença entre uma e outra é apenas o som de uma gota de chuva a
cair no mar».
Ambas são formas poéticas de
interpretar a questão. Mas refletir sobre o mal, qualquer que seja a forma
adotada, é já uma vitória, pois não raro ele nos aparece como austeríssimo lugar
onde o pensamento entra em colapso.
O mal toca universalmente as
existências e constitui a todos os níveis um desafio. O importante, porém, como
explica o filósofo Paul Ricoeur, não é tanto insistir em encontrar uma solução.
Mais relevante que pensar donde vem o Mal é sim descobrir o que podemos fazer
contra ele. A experiência do mal desafia à luta prática contra o próprio mal.
Reorienta-se, assim, o olhar para um novo futuro.
Como é que o mal deixa de ser o
irreparável? Quando aproveitamos o contexto de mal para um acontecimento doutra
ordem. Quando deixamos apenas de perguntar: «Porque é que isto me aconteceu?». E
investimos antes as nossas forças criadoras a decidir: «Como é que devo reagir
vitalmente a isto que aconteceu?». Apetece citar aqui uma página do
impressionante Diário de Etty Hillesum, um dos grandes testamentos espirituais
do nosso tempo. Está lá tudo.
«Foi lá [e a autora está a falar
da sua experiência no campo de concentração], entre as barracas, repletas de
gente agitada e perseguida, que achei a confirmação para o meu amor por esta
vida. Não tive um único corte com a vida. Havia como que uma grande
continuidade, plena de sentido. Como é que alguma vez vou conseguir descrever
isto tudo? Descrever de modo que outros também consigam sentir como na realidade
a vida é bela!».
É preciso contrapor à experiência
do mal uma sabedoria, enriquecida pela meditação interior, que dialogue com as
transformações pelas quais passamos. O modelo talvez seja realmente o dos
trabalhos do luto. O luto é a aprendizagem gradual da perda até senti-la dentro
de nós como possibilidade misteriosa de reencontro. Chegarmos a sentir, por
exemplo, que a morte dos que amamos ainda pode gerar vida, no sentido de que não
nos perdemos deles, mas continuamos a crescer e a maturar conjuntamente, só que
de forma diferente. O luto, quando bem vivido, é um trabalho espiritual, uma
mudança qualitativa que nos entreabre a um outro entendimento da vida. Em
relação ao mal precisamos disso: aprender que a experiência do mal não é uma
faca que nos decepa a vida.
Progressivamente, e sublinhe-se
aqui a importância da progressividade, podemos ir percecionando que a
experiência do mal não acarreta necessariamente a destruição de nós próprios.
Tornamo-nos então capazes de semear de novo, apesar de tudo e contra tudo o que
aconteceu. A ampliação da vida e o seu florescimento estão prontos para
acontecer.
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Escritor. Teólogo. Poeta.
In Diário de Notícias ( Madeira)
In Diário de Notícias ( Madeira)
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