Pe. Anderson Alves*
Reflexões sobre o atual ateísmo relativista
Em um texto anterior[i], nos perguntávamos se fosse possível conciliar o
relativismo e o ateísmo. E víamos que, segundo três famosos ateus (Nietzsche,
Adorno e Horkheimer) o ateísmo, ao negar a origem do conhecimento e ao tomar
como verdade a inexistência de Deus, cai numa contradição insuperável[ii]. De fato, quem nega a existência da verdade, não poderia
coerentemente afirmar que Deus não existe. Entretanto, sabemos que há quem se
esforce muito por conciliar relativismo e ateísmo, colocando um ateísmo
indiscutível e dogmático como fundamento do relativismo e construindo um sistema
de pensamento no qual se parte da negação de Deus e, a partir dessa verdade
quase “divina”, afirma-se um relativismo moral e cognitivo radical.
Um pensador que colocou em íntima relação o
ateísmo com o tema da verdade foi F. Nietzsche, autor que se considerava «ateu
por instinto». De fato, seu ateísmo voluntarista tinha como consequência a
afirmação de um forte relativismo e a verdade era considerada como «um exército
de metáforas, metonímias», «ilusões das quais se esqueceu a sua natureza
ilusória», «moedas nas quais as imagens foram consumidas»[iii]. Em outro texto famoso, ele fazia uma interessante
observação: «receio que não possamos nunca afastar-nos de Deus porque ainda
acreditamos na Gramática»[iv]. Desse modo, o ateísmo radical deveria conduzir a uma
sociedade sem ciências, sem explicações últimas, na qual o homem só seria capaz
de conhecer seus próprios estados de ânimo. Porém, tudo isso parte de uma
afirmação com valor de verdade absoluta: «Deus morreu, Deus continua morto, nós
o matamos»[v]. O “teomicídio” seria, pois, o ato supremo de uma vontade
que busca uma autonomia absoluta, e não de uma demonstração racional. E aquele
gesto traria consigo um relativismo radical, mas não certamente absoluto.
É certo que hoje muitos pensam que o
relativismo seja o fundamento do ateísmo, mas isso se deve a um modo superficial
de examinar o problema. Se o relativismo é total, se não há nenhuma verdade,
jamais pode ser verdade que Deus não exista. De modo que, surpreendentemente, o
ateísmo mesmo coloca limites ao relativismo. Em outras palavras, pode existir um
ateísmo relativista, ou seja, um ateísmo a partir do qual se deduz o
relativismo, mas não um relativismo ateu.
Então, é impossível um relativismo absoluto?
Coloquemos de outro modo a questão: pode ser verdade que não existe nenhuma
verdade? Só há duas respostas possíveis: “sim, é verdade que não existe nenhuma
verdade”. Ora, quem diz isso, assume, talvez inconscientemente, que há alguma
verdade; e se alguém disser “não, não pode ser verdade que não exista a
verdade”, certamente estaria usando melhor a sua razão e teria encontrado a
resposta lógica. De modo que, com uma resposta ou outra, a conclusão é sempre a
mesma: não pode existir um “relativismo absoluto”, a verdade sempre faz parte do
nosso pensamento e discurso.
A consequência disso é, que por incrível que
pareça, o relativismo só pode ser relativo, uma vez que só pode ser
parcial. Isso porque é sempre necessário aceitar que há alguma verdade, que algo
pode ser conhecido. Certo tipo de relativismo pode ser aceito para as opiniões,
que são afirmações de algo pouco fundamentado, de modo quando se opina se há
receio de que a afirmação contrária seja a verdadeira. Mas nem tudo na nossa
comunicação é simples opinião.
Aristóteles dizia que como a verdade é uma
realidade primeira do nosso pensamento, quem nega a verdade, afirma a verdade.
Ou seja, quem nega que ela exista, sabe já o que ela seja e supõe que é verdade
a sua não existência, o que é uma contradição em termos. Outro modo de fugir ao
compromisso com a verdade seria assumir a posição cética, ou seja, aquela
postura de certos pensadores que dizem não ser possível nem afirmar, nem negar a
verdade. Quem assume essa posição, certamente se livra da linguagem e da
“Gramática”, mas isso traz consigo uma consequência nefasta: não negar nem
afirmar algo, faz o ser humano se tornar semelhante a uma planta, com quem não é
educado discutir.
O relativismo só pode, pois, ser relativo, ou
seja, só pode ser aplicado a algumas afirmações e nunca a todas. A verdade não
pode jamais ser excluída da vida e da linguagem humana, a menos que alguém se
conforme em viver como uma planta. F. Nietzsche só pôde dizer que a verdade é
«um exército de metáforas», uma «ilusão», uma moeda sem valor porque sabia
perfeitamente o que é uma metáfora, uma ilusão, uma moeda com valor. Negar a
verdade implica sempre aceitar a verdade, assim como negar Deus implica
pressupor a sua existência.
Então, temos que colocar agora a incômoda
questão: afinal de contas, o que é a verdade? Platão dizia que «verdadeiro é o
discurso que diz as coisas como são, falso o que diz como as coisas não são»[vi]. E Aristóteles afirmou algo tão simples quanto essencial:
«Negar aquilo que é, e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que
é e negar o que não é, é a verdade»[vii]. A verdade se dá quando o nosso discurso expressa o que
as coisas realmente são.
Em que sentido então pode ser aceito o
relativismo? Já iniciamos aqui a resposta, mas a aprofundaremos numa outra
ocasião. O que importa agora é deixar clara a conclusão a que chegamos: o
relativismo não pode ser absoluto, só pode ser, por incrível que pareça,
relativo.
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* Pe. Anderson Alves, sacerdote da diocese de
Petrópolis – Brasil. Doutorando em Filosofia na Pontificia Università della
Santa Croce em Roma.
[ii] M. HORKHEIMER e Th.ADORNO, Dialettica
dell’illuminismo, Einaudi, Torino 1966, p. 125: «Percebemos “que também os
não conhecedores de hoje, nós, ateus e antimetafísicos, alimentamos ainda o
nosso fogo no incêndio de uma fé antiga dois milênios, aquela fé cristã que era
já a fé de Platão: ser Deus a verdade e a verdade divina”. Sendo assim, a
ciência cai na crítica feita à metafísica. A negação de Deus implica em si uma
contradição insuperável, enquanto nega o saber mesmo».
[iii] Cfr. F. NIETZSCHE, Sobre verdade e mentira no
sentido extra-moral, ed. Hedra, São Paulo 2007.
[iv] Cfr. Idem, Crepúsculo dos Ídolos, ed.
Companhia das Letras, São Paulo 2006.
[v] Idem, A Gaia ciência, ed. Hemus,
Curitiba 2002, p. 134.
[vi] PLATÃO, Crátilo 385 b; cfr. também
Sofista, 262 e
[vii] ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 e
segs.
Fonte: ROMA, 28 de Janeiro de 2013 (Zenit.org)
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