“É difícil encontrar uma pessoa feliz entre os ricos”: uma conversa com Bauman, um dos intelectuais mais importantes do nosso tempo.
Se
uma pessoa no alto dos seus 90 anos comparece a uma entrevista às 8h45, é porque
está em forma. Longe do seu inseparável cachimbo, este extraordinário dissidente
do capitalismo e hipercrítico com o comunismo, polonês com passaporte britânico,
tem aspecto de homem que sabe mais pelo que não diz do que pelo que diz. E disse
muito.
Nascido em Poznan em 1925, Zygmunt
Bauman (foto) é um dos intelectuais europeus vivos mais importantes, Prêmio
Príncipe das Astúrias de Comunicação e Humanidades 2010, junto com Alain
Touraine. Acredita que a desigualdade se instalou entre nós para ficar e que a
elite política há décadas não fala a mesma linguagem que as pessoas comuns. Essa
chamada por ele “modernidade líquida” já é modernidade liquefeita e, se duvidar,
evaporada…
De ascendência judaica, seus pais fugiram do
país após a invasão alemã, em 1939, e se instalaram na União Soviética. Expulso
em 1968 da Universidade de Varsóvia por razões políticas, Bauman retomou seu
trabalho docente nas universidades de Tel Aviv e Haifa. Desde 1971 é professor
emérito de Sociologia na Universidade de Leeds.
A lucidez, sua perspicácia e, talvez, acima de
tudo, sua experiência de vida, fizeram-no ser uma referência mundial
fundamental, um pensador a quem nada é alheio. Considera a nossa sociedade uma
das mais desiguais desde que, um dia, os europeus, com o estado de bem-estar
social, acreditaram ter resolvido tudo.
Gostaríamos de saber mais de você que
de suas ideias, embora não sei se são indissociáveis. É muito ou pouco
consumista?
Não se pode escapar do consumo: faz parte do
seu metabolismo. O problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar
consumindo… Desde o paleolítico os humanos perseguem a felicidade… mas os
desejos são infinitos. As relações humanas são sequestradas por essa mania de
apropriar-se do máximo possível de coisas.
Nas manhãs de domingo as famílias
britânicas não vão à missa, mas ao shopping. É esse o nosso novo
templo?
Sou muito cauto na hora de comparar consumismo
e religião. A religião é uma transgressão, te leva para além da tua vida.
Na América, antes, a tradição era que se reunisse a família ao redor da mesa
para comer e conversar. Nos últimos anos, apenas 20% das famílias fazem
isso.
Rompeu-se essa ideia nuclear de
família?
Sim, era uma interação física. Agora, ao
contrário, cada qual pega a sua comida, senta-se na frente do computador e come.
O ser humano de hoje passa sete horas e meia diante de algum tipo de tela. Se a
interação com alguém na rede não te interessa, aperta um botão e adeus.
Nas relações humanas não é tão fácil
desconectar.
O corpo a corpo te obriga a te confrontar com a
diferença. Administrá-la com os sentimentos, elaborá-la. Um efeito colateral
dessa dissociação é que se perdeu a vontade do trabalho “bem feito” também nas
relações. Perdemos a capacidade de nos relacionarmos com esmero.
Qualquer coisa que alguém escolhe
modifica o contexto.
Porque resitua a liberdade de outros. O
importante é ter a oportunidade de exercê-la. Neste momento, só há um grupo
muito reduzido de homens livres e uma grande massa que fica fora do jogo.
As classes médias perdem terreno e
parte delas estão se convertendo em proletariado, uma classe que você chamou de
“precariado”.
Lamento não ter lido o último livro de Thomas
Piketty antes de escrever o meu, porque cita coisas interessantes. Por exemplo,
que os direitos humanos são algo que herdamos da Revolução Francesa. Nosso
horizonte – que marca a distribuição da riqueza – deveria ser o bem comum. Os
ricos agem com toda essa riqueza – a maioria a herdaram – com absoluta
impunidade. Acreditam que eles nunca poderão falir.
As 85 pessoas mais ricas do mundo
acumulam uma riqueza equivalente aos quatro bilhões de pessoas mais pobres. Qual
é a pessoa pobre mais feliz que conheceu e a rica mais infeliz com que já se
encontrou?
É muito difícil encontrar uma pessoa feliz
entre os ricos.
Certa vez, o grande poeta Goethe – quando tinha quase a
minha idade – foi entrevistado por Eckermann.
“Diga-me, você teve uma vida feliz?”, perguntou-lhe.
E Goethe respondeu: “Pois, olhe, sim, tive uma vida
feliz.
Mas não me pergunte se tive
uma só semana feliz”.
Bom, então comecemos pelos que não têm
nada.
Uma pessoa pobre que consegue tomar café da
manhã, almoçar e, com sorte, jantar… é automaticamente feliz. Nesse dia
conseguiu seu objetivo. O rico – cuja tendência obsessiva é enriquecer mais –
costuma meter-se numa espiral de infelicidade enorme. A grande perversão do
sistema dos ricos é que acabam sendo escravos. Nada os sacia, entram em colapso,
uma catástrofe!
Você participou da Segunda Guerra
Mundial, combateu com o Exército polonês, trabalhou para os serviços de
informação militares… Qual foi o pior momento da sua vida e como conseguiu
recuperar-se?
Ao final, a vida não é um campeonato de
futebol, onde podes dizer “olha, aquele jogo foi o pior”. Mas lhe responderei
com uma anedota que pode parecer evasiva, mas não é. Certa vez, o grande
poeta Goethe – quando tinha quase a minha idade – foi entrevistado
por Eckermann. “Diga-me, você teve uma vida feliz?”, perguntou-lhe.
E Goethe respondeu: “Pois, olhe, sim, tive uma vida feliz. Mas não me pergunte
se tive uma só semana feliz”.
Então, a felicidade não é a soma de
momentos de felicidade, como dizem alguns?
Não, a felicidade é o gozo que dá ter superado
os momentos de infelicidade. Ter conseguido transformar teus conflitos, porque
sem conflitos as nossas vidas, a minha vida, teriam sido uma verdadeira
chatice.
Terá visto tantas circunstâncias que se
repetem ciclicamente – sociedades cheias de esperança, outras devastadas, as que
ficam destruídas, as que logo se recuperam… Isso o tornou mais
cético?
Eu prefiro identificar-me com o “homem
esperançado”. Há uma dinâmica da história que te leva ao ceticismo como atitude,
porque o otimista diz “estamos no melhor dos mundos” e o pessimista pensa “bom,
tanto faz se o otimista tem razão”. Sobre isso, recomendo-lhes “Generativi di
tutto il mondo, unitevi!”, de M. Magatti e Ch. Giaccardo, um manifesto publicado
este ano e que nos apresenta um conceito novo: a sociedade generativa.
O que significa esse conceito que acaba
de ser cunhado: sociedade generativa?
A sociedade de consumo é uma montagem que
consiste em que colhas tudo o que há ao teu redor para te preencher. O manifesto
gerador propõe o contrário: tudo o que tu podes dar à sociedade, é a única coisa
que pode nos salvar.
Como explicaria sua “modernidade
líquida” – definição perfeita da sociedade pós-moderna, consumista e banal – a
uma criança?
Ensinaria isto (Bauman pega um biscoito em
forma de estrela) e diria: “Se isto fosse uma pedra, mesmo que eu a girasse, a
virasse… não seria afetada por nada. Depois lhe mostraria este copo cheio de
água e lhe diria: “isto, simplesmente decantando, vês?, se modifica”. E se agora
não estivéssemos no Hotel Majestic, além disso, derramaria a água sobre a
mesa…
Adiante, adiante.
Bom, bastaria para explicar a essa criança que
a sociedade onde vive é flexível e extraordinariamente móvel. Antes, se você
dava um soco na realidade, a realidade não se movia. Tente fazê-lo agora! Antes
se sonhava poder trabalhar durante décadas na mesma fábrica, agora a Meca dos
jovens é trabalhar no Vale do Silício… E, quando muito, ficam oito meses.
Quando analisa dois totalitarismos – o
nazismo e o comunismo – conclui que os nazistas eram criminosos, mas não
hipócritas. Executavam o que proclamavam. “O comunismo, ao contrário –
acrescenta –, foi uma fortaleza de hipocrisia”. Já não é comunista, segue sendo
de esquerda?
Sou socialista. Efetivamente, os nazistas eram
transparentes: queriam infligir o mal e o fizeram. Sem espaço para dúvidas. O
comunismo foi uma grande farsa, nos enganou. Albert Camus já chamou a atenção
para esse fato: o comunismo é o mal sob slogans de ‘buenismo’. Por isso, nas
fileiras comunistas surgiu a real rebelião intelectual.
O desencanto, então, foi consequência
dessa grande farsa comunista?
Absolutamente. Trouxe a decepção e a
dissidência. Igualdade? Bem, foram alcançadas algumas cotas. Mas, e a liberdade?
Nada. E a fraternidade? Ainda menos! Essa foi sua grande contradição.
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Fonte:http://www.diariodocentrodomundo.com.br/25/05/2014
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