domingo, 25 de maio de 2014

" A força da palavra "

                             Palavra de médico

 

Desde sempre, o médico ofereceu, com a palavra, solidariedade, conforto e consolo

24/05/2014 | 07h02
J.J. Camargo: A força da palavra  Edu Oliveira/Arte ZH
Foto: Edu Oliveira / Arte ZH
O que aproxima a literatura da medicina é o compartilhamento de um território em que ambas lidam com a condição humana, a dor, o desespero, a esperança e a morte, como o fim da espera. O escritor e o médico dependem da palavra, instrumento de criação estética de um, e arma poderosa do outro.
 
A crescente materialização da medicina, encantada e seduzida pelo mundo fascinante da tecnologia, criou um paradoxo: os profissionais se tornaram muito mais competentes, mas os pacientes mais velhos falam com nostalgia dos médicos de antigamente que, conscientes de que eram pouco mais do que acompanhadores da história natural das doenças, revelaram-se exímios consoladores.
 
A percepção de que em algum momento perdemos o compasso tem estimulado um movimento de redenção a partir das escolas médicas que, tentando recuperar o encanto negligenciado, buscam, na interface com a literatura, a humanização das novas gerações. Aprendemos que mesmo que se enriqueça a medicina com a mais sofisticada tecnologia, a palavra continuará sendo a mais eficiente ferramenta que o médico dispõe para exercer sua arte e sua ciência. E é justamente ela que permeia as relações fraternas entre a medicina e a literatura.
 
A mesma palavra que o escritor esculpe na busca da frase mais pura é a que expressa o sentimento sofrido do enfermo, e que dá a chance ao médico de, juntando pedaços de queixas, construir a anamnese, que vem do grego e significa a anti-anamnese, a memória, o que não se esquece, a recordação. E essas palavras constituirão o primeiro registro escrito de uma relação que começa com uma investigação sumária das possibilidades diagnósticas e passa a fazer parte do prontuário do paciente, um arquivo pessoal, indevassável e permanente. Com a palavra, desde sempre o médico ofereceu solidariedade, esperança e consolo quando mais não havia a ser oferecido. E os prontuários, como os livros, guardam palavras que se eternizam.
 
A literatura sempre encantou os médicos porque eles, que trafegam na emoção, perceberam que sublimar um sentimento por meio da palavra é um dom dos curadores de espírito, aqueles artistas que, com sutileza, dão graça à vida, enternecem os que sofrem, emocionam os rígidos e dão esperança aos desvalidos.
 
A tendência crescente nas melhores escolas de medicina do mundo de introduzir nos currículos da graduação temas que discutam humanidades é um explícito pedido de socorro da medicina à literatura, com a clara intenção de, pelo exercício da sensibilidade, resgatar os ingredientes básicos de uma relação afetiva que precisa ser retomada nos seus fundamentos essenciais.
 
A palavra sempre foi instrumento da relação entre o doente, com seus dramas e tragédias, e o seu médico, treinado para ajudar a enfrentá-las. O paciente, fragilizado pela fantasia da morte, sempre buscou na palavra do médico mais do que a promessa de ajuda, o compromisso da parceria, confirmando que, independentemente da circunstância, a solidão é a mais devastadora das enfermidades, e poder dividi-la com alguém ainda é a melhor terapia.

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