quarta-feira, 28 de maio de 2014

" Equilíbrio,corpo,mente "




Segurando uma rosa, Yoshito Ohno, o único representante vivo da geração que criou o butô, fala aos alunos: "Ela precisa de ar puro e sol para crescer, enquanto as raízes caminham para a escuridão. Temos de sentir o conflito das duas forças e andar". Então sai do meio do círculo e aciona a música. É o sinal para que seus alunos encontrem, por meio de movimentos, o equilíbrio das duas forças. Esse é um dos exercícios propostos por Ohno e que evidencia a natureza dualista do butô, uma dança contemporânea japonesa criada por seu pai, Kazuo Ohno, e por Tatsumi Hijikata.

Kazuo teve uma infância pobre, e seu interesse por dança começou quando um professor o levou para assistir à performance de um bailarino espanhol. Em 1938, foi arrastado para o exército e passou nove anos testemunhando os horrores da guerra. Quando voltava para casa, num barco, viu águas vivas ao lado dos corpos de combatentes mortos, feridos e doentes que eram jogados ao mar. É deste período um dos seus primeiros trabalhos, Jellyfish Dance. Kazuo encontrou conforto e significado para a dor ao transformá-la em movimento, em expressão. "Ele costumava dizer `eu sou o morto que está vivo¿. Isso o matou uma vez e ele renasceu de outra maneira", lembra seu filho, Yoshito. Longe de celebrar a tristeza, o butô usa as emoções internas como expressão do corpo e da alma: o sofrimento e a dor, a alegria e a diversão.

Quando estava com cerca de 50 anos, Kazuo havia estabelecido uma dança dura, com movimentos extremamente concentrados e controlados. Mas, como no budismo, o butô entende a morte como o espaço para algo novo. E Kazuo morreu e renasceu mais uma vez. "Depois dos 50 anos, ele apareceu dançando igual a uma virgem", se diverte Yoshito.

Butô é mais do que uma dança. Esconde em seus movimentos lentos, calmos e profundos uma filosofia: é a expressão do que está guardado na alma. Não há coreografia ou tema. E os bailarinos podem ser pessoas de todas as idades e tipos físicos. Kazuo faleceu em 2010, aos 103 anos. Em sua última apresentação, em 2001, já não mexia as pernas, e, dançando com os braços e o olhar, levou a plateia ao delírio.
Kazuo foi além e também dançou de costas para a plateia, pois não acreditava que ela precisasse estar de frente para sentir. Com esse ato, simbolicamente, ele diz que não existe frente nem costas, e que também não existe interpretação no butô. Sua dança convida os espectadores a terem outra experiência que não apenas assistir. Experimentar um espetáculo de butô é sentir, é atravessar as emoções junto com o bailarino. Kazuo achava que poderia chorar de costas e que todos iriam sentir. E ele estava certo.

Algumas emoções dormem um sono profundo, ou se camuflam dentro do baú que é a alma de cada um. Libertar esses sentimentos é uma das práticas do butô. Não existe um método, mas a busca se dá treinando o olhar com profundidade, com exercícios que buscam as verdadeiras emoções, muitas vezes abafadas pelo ego. E, uma vez acessadas, essas sensações vêm à tona, seja no bailarino, seja no espectador. Yoshito fala no esvaziamento da alma. É preciso olhar para dentro para reencontrar em sua memória medos e alegrias. E ter coragem para trazer isso à tona.


Antes da ação, a alma

Kazuo dizia que primeiro a alma dança, depois o corpo. No caminho do butô, o corpo apenas segue a alma, naturalmente. Yoshito repete nos treinamentos: "É importante ter mãos que venham de dentro de você", numa alusão à profundidade das ações.

Yoshito também fala de essência, de vida e de morte como se falasse das coisas mais doces. Mantém leveza no tom e um sorriso no rosto enquanto leva adiante sua incumbência depois da morte do pai: fazer o butô sobreviver. O pai, que enfrentou a morte diversas vezes e corajosamente explorou e expôs seus sentimentos profundos, confessou ao filho, antes de morrer, que estava com medo. E no mais intenso dos exercícios propostos, Yoshito pede aos alunos que se encontrem com a morte. Um dos bailarinos treme, o corpo morre, e o pavor invade seus olhos, imóvel. Ao final do exercício ele precsa de alguns minutos para se recuperar. O medo foi encontrado e era visível em sua pele.


Leveza e profundidade

Yoshito se apoia em metáforas da natureza para ilustrar suas ideias. A floração das cerejeiras é belíssima, com as árvores carregadas de delicadas flores de um rosa pálido. Mas duram poucos dias. Frágeis, as pétalas são arrancadas no primeiro vento forte. "Lindo!", diz com um sorriso. E, então, logo se move como um vendaval e conclui: "não sobra nada". Apesar dos 74 anos, seu corpo é eloquente quando representa o dualismo das forças do butô. É preciso apreciar luz e escuridão com a mesma intensidade, afinal, uma não existe sem a outra.

Certa vez, Yoshito estava ministrando um curso na Itália e percebeu que os bailarinos se moviam com destreza, eram leves e sorridentes, mas não sabiam ficar parados. No final do dia, foi para o quarto e observou uma pedra do tamanho de um homem que ficava no jardim. No dia seguinte, veio com o exercício: queria que os bailarinos experimentassem ser a pedra. Propôs que ficassem sem se mover. Mas não era só isso. Ele queria que a imobilidade fosse repleta de significado e que sentissem tudo ao redor. E, dessa forma, aprenderam o lado escuro da dança. Há um significado profundo em adotar a postura de pedra, a não atitude como escolha, o silêncio.

Equilibrar luz e escuridão, ou leveza e profundidade, foi a eterna busca de Kazuo. E, às vezes, se vestia com roupas femininas, atrás da sensação de delicadeza. Ele sabia usar a energia das roupas, dos objetos e dos lugares. Dizia que há emoção em tudo. Yoshito esteve no Brasil no início deste ano e dançou na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Tiradentes, Minas Gerais. Soube que antigamente tinham o hábito de sepultar padres e pessoas de posses no porão da igreja. Como estava pisando em sepulturas, fez uma dança sobre os mortos, evidenciando cuidado onde colocava os pés. Depois virou pedra, se transformou numa estátua, rezou, e, por fim, também morreu. A dança foi profunda, executada em respeito aos mortos enterrados na igreja. Ao final, transformou tudo em alegria, virou um coelho e saiu pelas portas da igreja saltitando. "As crianças adoraram", ri alto a lenda viva do butô.


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Emidio Luisi é fotógrafo, ítalo-brasileiro, e um dos grandes nomes na fotografia de teatro e dança.

Mariana Baccarin entrevistou, pessoalmente, Yoshito, o mestre do butô, durante uma viagem ao Japão.

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