Passageiros buscam saída para o caos. ‘É uma massa solitária, que deixou de ter desejos'
Para filósofo italiano, a metrópole é um corpo em constante movimento. Quando paralisa de repente, entra numa órbita de irracionalidade pura
A
cidade que nunca para parou. E por falta de aviso prévio, por inércia ou por
desatino, milhares continuaram em movimento, na determinação de chegar aonde iam
ou de voltar ao ponto de partida. Foi um transtorno atroz na visão dos
paulistanos, e um caos tempo-espacial na perspectiva do italiano Mauro
Maldonato, que acompanhou o vaivém insano do povo atrás de condução. Depois de
rodar pelo interior de São Paulo em eventos que tratavam do corpo e do tempo, o
filósofo estacionou na capital no auge da greve para lançar seu novo livro.
Da Mesma Matéria que os Sonhos se junta a A Subversão do Ser,
Raízes Errantes e Passagens do Tempo, todos publicados pelas
Edições Sesc. Desta vez ele trata de consciência, racionalidade e
livre-arbítrio.
Maldonato nasceu na piccola e aprazível Sapri,
distante 140 quilômetros de Nápoles, na qual vive hoje. Já passou bons anos em
Londres, onde estudou na London School of Economics; morou em Paris, onde
frequentou a École des Hautes Études em Sciences Sociales; foi professor
visitante da PUC-SP e da USP; e hoje dirige o Cognitive Science Studies for the
Research Group, na Universidade Duke. Também é professor no Departamento das
Culturas Europeias e do Mediterrâneo na Universidade Della Basilicata e acaba de
chegar de Dubai. Foi dar mais uma conferência sobre o tempo, que parece se
multiplicar em suas mãos.
Nesta entrevista, feita no mezanino envidraçado
de um hotel nos Jardins, Maldonato falou do que via lá fora: a metrópole
desencarnada. “Esses corpos são desmaterializados, fruto de uma massa doida que
deixou de ter relações significativas sob o efeito ilusório da grande lente
imaginária sustentada pela internet.” Além disso, diz ele, a velocidade urbana,
mais acelerada, não casa com a velocidade da biologia, infinitamente mais lenta.
Não há mais sintonia. “Vivemos a era do instantâneo, e é muito provável que nos
deparemos com novas patologias provocadas por essa assimetria.” Seria esse
napolitano um ser apocalíptico? Aos 54 anos de idade, pai de um adolescente de
15, ele garante que não. Apenas gosta de pensar: “Falta a paciência da espera, e
hoje o efeito antecipa a causa. É um tema que instiga, intriga, interpela,
porque é o tema do nosso futuro”.
Quando uma cidade estressada como São
Paulo é obrigada a parar, ela parece ainda mais estressada do que quando está em
movimento. Como explicar isso?Para responder à sua pergunta, é
interessante pensar numa metáfora. Uma cidade é um corpo. Não um corpo orgânico
no sentido tradicional, mas um corpo no formato de um sistema nervoso, que tem a
sua consciência e a sua parte inconsciente. Esse sistema nervoso funciona por
meio de inputs e outputs, movimentos de entrada e saída. Imaginemos um número
infinito de pessoas como as que vivem em São Paulo, que vêm e vão. Quando
qualquer coisa, um objeto, uma situação, uma greve interrompe esse fluxo, um
corpo como a cidade entra numa espécie de paralisia. A greve interrompe esse
fluir, a cidade entra numa órbita de irracionalidade pura, na qual até os
direitos primários, mais básicos, como as relações entre as pessoas, se
interrompem. Isso naturalmente produz alterações em uma metrópole que convive ao
mesmo tempo com realidades pós-modernas e pré-modernas, como São Paulo. A
paralisação adoece o imaginário, a expectativa, a vitalidade.
Mas seria uma característica típica de
São Paulo? Ou comum a todas as metrópoles?
Por muito tempo vivi em Londres, também no Oriente Médio, no Extremo Oriente, visitei Hong Kong, Dubai, e naturalmente cidades mais antigas, como Nova York e São Paulo. Sim, elas têm algo em comum. São todas imensos navios com um grande depósito de corpos. Esses corpos parecem não pertencer a eles mesmos. São desmaterializados, fruto de uma massa doida, de uma massa solitária, que deixou de ter desejos, de ter relações significativas, sob o efeito ilusório da grande lente imaginária suportada pela internet. Como se isso produzisse um aumento das relações...
Por muito tempo vivi em Londres, também no Oriente Médio, no Extremo Oriente, visitei Hong Kong, Dubai, e naturalmente cidades mais antigas, como Nova York e São Paulo. Sim, elas têm algo em comum. São todas imensos navios com um grande depósito de corpos. Esses corpos parecem não pertencer a eles mesmos. São desmaterializados, fruto de uma massa doida, de uma massa solitária, que deixou de ter desejos, de ter relações significativas, sob o efeito ilusório da grande lente imaginária suportada pela internet. Como se isso produzisse um aumento das relações...
Não é uma visão exatamente otimista da
internet e das redes sociais.Não tenho um visão pessimista quanto a
isso, mas as redes sociais são um fenômeno evolutivo que a humanidade ainda não
processou. Houve uma época em que a cidade tinha um sentido tradicional. Ele se
alargou com o advento da metrópole e depois com a megalópole. É como se a cidade
deixasse de ter sua evolução natural, como todas as coisas da vida. Seu estágio
atual é o da velocidade. Falta a paciência da espera, e hoje o efeito antecipa a
causa. Se tenho esse telefone e o deixo cair no chão, tenho uma relação de causa
e efeito, certo? Mas parece que a relação é ao contrário. E isso, do ponto de
vista evolutivo da mente humana, não foi elaborado, porque nossas estruturas
cerebrais são ainda muito arcaicas. Há uma diferença entre o tempo da sociedade,
da velocidade urbana, e o tempo da nossa biologia, que é muito lento. É muito
provável que nos deparemos com novas patologias provocadas por essa assimetria.
Porque a coisas não estão mais juntas, não há mais sintonia. Nossa expectativa
quando aguardávamos uma carta era uma. Agora existe a impaciência de ler um
e-mail.
Que patologias seriam essas? É possível
antecipá-las?Patologias urbanas. Está previsto um crescimento da
depressão e outros fenômenos de ansiedade, um fenômeno que aumentou
exponencialmente. É impressionante. Se você vai à farmácia e pergunta qual é o
medicamento mais vendido, certamente são aqueles para o coração e os
antidepressivos.
Mas a pessoa fica deprimida porque não
consegue se adequar a esse tempo? Ou ela é deprimida, e o tempo não se adapta a
ela?São duas coisas diferentes: uma é a depressão endógena,
orgânica, e as causas estão no nosso cérebro. Outra é a depressão como
consequência da incapacidade de se adaptar à velocidade e à complexidade do
mundo em que vivemos. Mas os sintomas convergem: uma pessoa deprimida vive um
tempo congelado, imóvel, interrompido, sem esperança, estéril, paralisado. É
como uma cidade que, entre altos e baixos, é obrigada a parar repentinamente.
Fica inquieta, nervosa, agressiva. É uma heteroagressividade, contra o outro,
que pode se transformar numa autoagressividade. Porque a depressão tem essa
inquietude, essa laceração interior, que provoca dor.
No ócio criativo, postulado pelo
italiano Domenico de Masi, o tempo livre seria fundamental. Diante da escassez
de horas vagas, estaríamos menos criativos?O que significa uma
apologia do tempo livre, do ócio criativo no panóptico social pós-moderno? Que
sentido teria uma liberdade dentro de um nicho não contaminado pelo pecado
social da obrigação? Não há nenhuma intenção polêmica nisso, mas me parece que
esse achado se sustenta na convicção de que existam espaços de liberdade puros,
incontaminados e imunizados. Além disso, o elogio incondicional do ócio degrada
o trabalho. Ele seria nada mais que labuta necessária, forçosa. Para mim não é
assim. Eu me divirto muito trabalhando. Tenho receio de que a defesa
entusiasmada do tempo livre retome o tema aristocrático da liberdade como
superioridade elitista, aristocrática, que torna a ser proposta, mas agora com
tempero democrático. Mas não há nada de democrático nessa liberdade, porque lhe
falta o caráter da universalidade. É uma liberdade que desistiu de lutar por ela
mesma.
Você usa o filme Wall Street: Poder
e Cobiça como metáfora do tempo da modernidade. Que filme representaria a
pós-modernidade?Blade Runner é pós-moderno. Talvez eu não seja
original, mas ele parece profético, representa o tema que todos temos diante de
nós, ou seja, a consciência de que as máquinas um dia terão sentimentos. Olho
com extremo interesse a inteligência artificial. O verdadeiro desafio
intelectual é imaginar se essa máquina vai assumir sua autonomia com pequenos
fragmentos de livre-arbítrio.
O que achou do filme Ela? Não
lhe pareceu atual, apesar da proposta futurista?Ela é absolutamente
fascinante. É um olhar agudo sobre nosso presente. Por trás de uma história de
amor ao silício, simples mas profunda e original, indagam-se a natureza e as
implicações da intimidade e das relações humanas no mundo contemporâneo. Sem
lições morais. O diretor, Spike Jonze, entra na mente e no coração da máquina,
tentando eludir as diferenças. Quem amamos quando nos apaixonamos pelo
computador? É nossa projeção, nosso desespero ou um outro ser? A câmara
prefigura a sociedade que seremos em breve. Sobretudo apresenta-nos a tecnologia
não como uma inimiga insidiosa, mas sem preconceitos e sem evocar emoções
obscuras. Uma visão inovadora, nada inquietante, uma pesquisa estética,
sedutora.
A extrema velocidade do mundo seria um
recurso para nos afastar da nossa humaníssima morte?A morte é o
tornassol do frágil arcabouço do moderno. Todas as imagens da mídia são imagens
que celebram a beleza, o corpo sadio e juvenil. Rejeitam tudo o que nos remete à
condição mortal. A morte continua sendo o único verdadeiro escândalo da
modernidade. Embora a espetacularizem, os meios de comunicação de massa se
imunizam contra a morte porque ela contradiz seus valores: o consenso e o
consumo. Não por acaso, para exorcizar a morte na internet, há uma ampla oferta
de lóculos de cemitério com imagens, vozes e sons; tarifários para a
mumificação; empresas que lançam em órbita as cinzas; e assim por diante. Mas as
coisas são ligeiramente mais complicadas do que isso. A morte verdadeira por
envelhecimento precoce de Dolly, a simpática ovelhinha criada eugeneticamente,
foi um golpe duro para aqueles que, além da própria imagem de preferência
tridimensional, queriam manter em vida também o corpo.
Mauro Maldonato é filósofo, psiquiatra,
autor de 'Da mesma matéria que os sonhos' (Sesc)
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Reportagem por Mônica Manir - O Estado de
S. Paulo
Foto:
LEO EELOY/SELVAS
Fonte:
Estadão online
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