CELSO GUTFREIND*
Desde criança, aprendi a cultivar a tolerância e me defender do preconceito.
Acho que a lição veio de casa, porque o Derrida ainda não tinha falado em hospitalidade ou respeito ao outro.
Pelo menos, não para mim. O que faço é longe do ideal, mas funciona. Sem ser religioso, tenho amigos devotos, incluindo um padre, um pastor e um rabino. Aprendo muito com a cultura que me alcançam. Tenho fé de que nos tornamos melhores depois de encontrar alguém diferente. Ninguém é igual.
Também entro pouco no mundo dos negócios. Negocio o mínimo necessário para tocar meu negocinho. Mesmo assim, presto atenção no que contam as empresas. Elas agora dizem que a seleção de executivos não está mais só de olho nos “melhores alunos”. Já não basta estudar em faculdade de prestígio nem mostrar alto desempenho.
Notas 10 estão meio em baixa. Durante o processo, avaliadores procuram a pessoa dentro da pessoa. E vasculham as entranhas onde tem, especialmente, afetos. Desejam saber que ser humano é o candidato. Sentiram que importa menos alguém inteligente, que deixe a desejar nas emoções. Conta ainda uma segunda língua; inglês, de preferência. Somam pontos o espanhol, o francês e até o mandarim. Mas nem tudo é número. Ser poliglota já não tem o mesmo peso. Mais vale uma língua no coração do que duas na cabeça.
Não pega bem é calar-se com frieza, se dar mal com os outros, ter pouca empatia. Indispensável saber relacionar-se, conversar, estar junto. Pensar além da informação, hoje disponível em qualquer clique. O domínio da tecnologia está cada vez mais importante. Mas não são menos relevantes as poesias lidas, os romances percorridos, as músicas escutadas, as idas ao cinema. E aos parques. Antes disso, as amizades que guardamos. Antes ainda, os cuidados à criança que fomos. E a atenção ao bebê que de certa forma nunca deixamos de ser.
Eu desconfiava. Agora, sou informado por amigos empresários que cultivo desde aquela tolerância anterior ao Derrida. Só não me contaram o que vai dar de tudo isso. Se vai acalmar a selva da vida humana e tornar o mundo mais respeitoso. A considerar o atendimento das Companhias Telefônicas, não ainda. Mas a criança eterna dentro de mim já se enche de esperança.
Ontem fui caminhar na praça. Perto do pipoqueiro, tinha uma mãe fazendo bilu-bilu na filhinha. Ela produzia umas cócegas de tão alto nível, que me deu vontade de sentir também. Era qualidade total de carinho. No meio das gargalhadas, lançava um olhar tão intenso, que parecia cumprir todas as metas e ficar.
Ficou. Senti em mim aquele olhar, estou sentindo ainda. Só depois de um tempo, voltei a pensar. Pensei que a guriazinha talvez nem precise aprender inglês quando crescer. Se eu fosse dos recursos humanos, guardaria a vaga para ela.
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*Psiquiatra e escritor. Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 22/02/2014
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