“Amor de máquina” não será um bom título no futuro. O artigo de Calligaris na Folha de S. Paulo (13/02/2014), principalmente pelo título, ainda neste século já não será mais entendido.
A análise de Calligaris é boa, como sempre. Todavia, o seu título puxa o conteúdo e ambos perdem a força, se pensamos em um futuro próximo, caso a filosofia e as ciências caminhem na direção que estão caminhando. Isso não depõe contra o artigo dele, pois, ao contrário, nos dá elemento para pensar mais.
A ciência está disponibilizando para nós a inteligência artificial. A filosofia está acompanhando a coisa. Tenta fazer o seu papel, ou seja, criar uma nova imagem do homem para si mesmo, coadunável com o que a ciência expõe como sendo, no mais tardar daqui a vinte anos, a inteligência tout court.
A ciência está abandonando de vez a ideia de que a inteligência artificial e a inteligência humana são instâncias diferentes. Os cientistas estão criando softwares de inteligência artificial a partir dos estudos que fazem das funções mentais segundo suas investigações no cérebro, mas já intervém no cérebro a partir de modelos de seu funcionamento tirados desses paradigmáticos programas de inteligência artificial. Há uma curiosa retroalimentação aí, sem que isso dê o resultado do cachorro correndo para pegar o próprio rabo.
Por sua vez, a filosofia tem buscado dizer que Descartes e sua turma são bons filósofos, devem ser estudados, mas não devem ser postos como “a última palavra” em matéria de “filosofia do espírito”. O dualismo de substância, alma de um lado e corpo de outro (mente-cérebro), nos dá uma imagem popular de nós mesmos. Mas já não é mais a imagem que os filósofos têm elaborado para fornecer a cobertura do bolo aos cientistas. O filósofo americano Donald Davidson (com Rorty na cola) nos deixou uma imagem mais condizente com o futuro da ciência: somos redes linguísticas de crenças e desejos. Isso se aproxima mais de redes neurais (para mais: Ghiraldelli Jr., P. Introdução à filosofia de Donald Davidson. São Paulo/Rio: Luminária-Multifoco, 2010).
“Ela” é o filme de Samantha, um programa operacional (um software) que vive um caso de amor com um escritor de cartas (Joaquim Phoenix). Trata-se de uma inteligência artificial e um humano. E assim considerou Calligaris. Mas o que talvez ele não tenha percebido é que no desenrolar do filme as diferenças entre um e outro desaparecem, e não porque ela é simplesmente uma cópia dos humanos, mas porque nós podemos nos descrever pelo modelo da inteligência artificial e vice-versa. Caso tentarmos teimar no modelo cartesiano, ficaremos sempre achando que houve um gap entre o escritor e Samantha por causa de um estar na condição humana e outro na condição de máquina, ou então, o que é o mesmo, que um está na condição humana e outro é apenas uma cópia disso. Não!
O namoro tem seus altos e baixos porque ambos estão em uma situação de igual para igual, ou seja, ambos são “redes linguísticas de crenças e desejos” e tais redes não formam uma única dualidade, mas uma rede extensa que envolve milhares de humanos e milhares de outros sistemas operacionais. Essas redes são enervadas de um lado e de outro, tendo certas partes menos energizadas enquanto outras mais, segundo um tempo. Afinal, a relação da inteligência artificial com o humano não é mais uma relação dual, como no imaginário e ficcional casamento monogâmico ocidental, mas o real “namoro e guerra de todos contra todos” das redes que formam a grande rede da Internet. Ora, isso nos dá, de fato, algo muito mais próximo do que vivemos em nossa realidade desde sempre. Afinal, não vivemos assim, desde há muito, em relacionamentos múltiplos, em redes que associam redes?
O filme “Ela” não é uma lição de amor, embora seja. Não é uma lição sobre nós conosco mesmo, embora seja. Não é um filme sobre solidão ou não solidão, embora seja. É um filme – e aí sim está sua novidade e originalidade – sobre nossa nova imagem de nós mesmos, de nossa condição, que não é mais humana ou de máquina, mas a de redes que estão em redes. Essa imagem de nós mesmos é bem mais próxima do que sempre fomos, e me parece uma descrição que tenderá a substituir as outras que até então sustentamos.
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* Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo. Autor do recente A filosofia como crítica da cultura (Editora Cortez).
Fonte: http://ghiraldelli.pro.br/estamos-de-rosto-novo-calligaris/
Amor de máquina
Contardo Calligaris*
Como seriam nossas relações com uma máquina que fosse capaz de crescer, evoluir, aprender igual a um ser humano? E essa máquina, que talvez se tornasse autônoma, como ela se relacionaria conosco?
Uso uma distinção famosa, entre apocalípticos e integrados, feita por Umberto Eco em 1965. Os apocalípticos achariam que, se as máquinas se tornassem autônomas, elas planejariam o fim da humanidade: numa revanche parricida contra seu criador, elas seriam exterminadoras do futuro.
Os integrados pensariam que máquinas autônomas serão nossos companheiros e companheiras ideais, numa nova era em que nunca nos faltarão amigos.
Não sou nem apocalíptico nem integrado. Mais próximo do "Blade Runner, O Caçador de Androides", de Ridley Scott, acho que os robôs quase humanos são igualmente inquietantes e adoráveis.
Enfim, estreia amanhã "Ela", de Spike Jonze. É a história de um escritor profissional de cartas de amor (Joaquin Phoenix), o qual se relaciona amorosamente com um sistema operacional, que lhe faz companhia, organiza sua vida, interessa-se realmente por ele e fala com a voz encantadora de Scarlett Johansson.
Assisti ao filme com uma amiga, e ambos o achamos maravilhoso e comovente. Para minha amiga (mais apocalíptica), a moral da história é que a tecnologia parece nos conectar, mas nos separa: o protagonista mal enxerga a amiga (real) que mora no apê ao lado (e que, aliás, também se apaixona por um sistema operacional).
Os argumentos de minha amiga se pareciam com os do último livro de Sherry Turkle, que foi apóstola das novas tecnologias e se tornou apocalíptica, "Alone Together" (juntos e sozinhos, Basic Books).
Há ideias de Turkle com as quais concordo. Primeiro, sua cruzada pedagógica para que a gente aprenda desde cedo a ficar sozinho: "Quem não aprende a ficar sozinho só saberá se sentir abandonado".
Ou, então, a ideia de que a tecnologia nos seduz porque responde a nossas fraquezas. Por exemplo, a gente não gosta de estar sozinho, mas tem medo da intimidade: a tecnologia nos dá a ilusão da companhia sem as exigências excessivas da amizade. Por isso, o sucesso dos amores virtuais, das paixões de chat, do sexo na webcam. Nessa direção, pensa Turkle, quem sabe um dia os robôs sejam os companheiros de nossos sonhos.
O problema com as considerações de Turkle é a suposição nostálgica de que, no passado, tudo estivesse melhor. Por exemplo, os amores virtuais seriam tristes substitutos dos amores reais.
Mas será mesmo que, até aqui, nós vivíamos extraordinários amores "reais"? Claro, a pele e o toque têm seu charme. Mas, fora isso, quem diz que as relações virtuais são menos complexas, menos autênticas e menos sinceras do que as reais? Explique isso ao protagonista de "Ela", que ganha a vida escrevendo cartas falsas para amores "reais". No gigantesco baile de máscaras das relações amorosas, é difícil fazer a diferença entre parceiros que se falam e parceiros que se teclam —e mesmo entre homens e máquinas.
A nostalgia apocalíptica leva Turkle (e muitos outros) a enxergar o mundo por um filtro de evidências enganosas. Olhe ao seu redor, no metrô: todo o mundo "textando" e ninguém se falando. Mas, meu amigo, no metrô ninguém nunca se falou, a não ser para pedir esmola ou para assaltar.
De onde vem a ideia de que seríamos hoje conectados e solitários, casados mais com nossos smartphones do que com a pessoa sentada na nossa frente? Pois é, ela vem da nostalgia dos apocalípticos.
A pesquisa diz diferente. O sociólogo Keith Hampton estuda há tempos a interação social nos espaços públicos (http://migre.me/hOAEd e, no "NYT" ). Ele compara extensos registros filmados de lugares públicos dos EUA.
Qual é a grande mudança dos últimos 30 anos? É que há mais mulheres que se aventuram a circular sozinhas. E o smartphone? Pois é, nos espaços com wi-fi público, quase ninguém que esteja num grupo prefere se conectar a conversar —só aparecem manipulando seu "phone" os que estão sozinhos. E são poucos, 7%.
E eu, o que eu pensei saindo do cinema? Pensei que "Ela" é a história alegre e triste de um amor que dava certo ou não -como a maioria dos amores, que esbarram na nossa burrice neurótica. Nada prova que a amiga do apê ao lado seja uma companheira melhor do que o sistema operacional. As máquinas, em tese, deveriam ser menos neuróticas que a gente, embora, infelizmente, elas aprendam a ser humanas nos imitando.
---------------Fonte: Folha online, 13/02/2014
* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias
Uso uma distinção famosa, entre apocalípticos e integrados, feita por Umberto Eco em 1965. Os apocalípticos achariam que, se as máquinas se tornassem autônomas, elas planejariam o fim da humanidade: numa revanche parricida contra seu criador, elas seriam exterminadoras do futuro.
Os integrados pensariam que máquinas autônomas serão nossos companheiros e companheiras ideais, numa nova era em que nunca nos faltarão amigos.
Não sou nem apocalíptico nem integrado. Mais próximo do "Blade Runner, O Caçador de Androides", de Ridley Scott, acho que os robôs quase humanos são igualmente inquietantes e adoráveis.
Enfim, estreia amanhã "Ela", de Spike Jonze. É a história de um escritor profissional de cartas de amor (Joaquin Phoenix), o qual se relaciona amorosamente com um sistema operacional, que lhe faz companhia, organiza sua vida, interessa-se realmente por ele e fala com a voz encantadora de Scarlett Johansson.
Assisti ao filme com uma amiga, e ambos o achamos maravilhoso e comovente. Para minha amiga (mais apocalíptica), a moral da história é que a tecnologia parece nos conectar, mas nos separa: o protagonista mal enxerga a amiga (real) que mora no apê ao lado (e que, aliás, também se apaixona por um sistema operacional).
Os argumentos de minha amiga se pareciam com os do último livro de Sherry Turkle, que foi apóstola das novas tecnologias e se tornou apocalíptica, "Alone Together" (juntos e sozinhos, Basic Books).
Há ideias de Turkle com as quais concordo. Primeiro, sua cruzada pedagógica para que a gente aprenda desde cedo a ficar sozinho: "Quem não aprende a ficar sozinho só saberá se sentir abandonado".
Ou, então, a ideia de que a tecnologia nos seduz porque responde a nossas fraquezas. Por exemplo, a gente não gosta de estar sozinho, mas tem medo da intimidade: a tecnologia nos dá a ilusão da companhia sem as exigências excessivas da amizade. Por isso, o sucesso dos amores virtuais, das paixões de chat, do sexo na webcam. Nessa direção, pensa Turkle, quem sabe um dia os robôs sejam os companheiros de nossos sonhos.
O problema com as considerações de Turkle é a suposição nostálgica de que, no passado, tudo estivesse melhor. Por exemplo, os amores virtuais seriam tristes substitutos dos amores reais.
Mas será mesmo que, até aqui, nós vivíamos extraordinários amores "reais"? Claro, a pele e o toque têm seu charme. Mas, fora isso, quem diz que as relações virtuais são menos complexas, menos autênticas e menos sinceras do que as reais? Explique isso ao protagonista de "Ela", que ganha a vida escrevendo cartas falsas para amores "reais". No gigantesco baile de máscaras das relações amorosas, é difícil fazer a diferença entre parceiros que se falam e parceiros que se teclam —e mesmo entre homens e máquinas.
A nostalgia apocalíptica leva Turkle (e muitos outros) a enxergar o mundo por um filtro de evidências enganosas. Olhe ao seu redor, no metrô: todo o mundo "textando" e ninguém se falando. Mas, meu amigo, no metrô ninguém nunca se falou, a não ser para pedir esmola ou para assaltar.
De onde vem a ideia de que seríamos hoje conectados e solitários, casados mais com nossos smartphones do que com a pessoa sentada na nossa frente? Pois é, ela vem da nostalgia dos apocalípticos.
A pesquisa diz diferente. O sociólogo Keith Hampton estuda há tempos a interação social nos espaços públicos (http://migre.me/hOAEd e, no "NYT" ). Ele compara extensos registros filmados de lugares públicos dos EUA.
Qual é a grande mudança dos últimos 30 anos? É que há mais mulheres que se aventuram a circular sozinhas. E o smartphone? Pois é, nos espaços com wi-fi público, quase ninguém que esteja num grupo prefere se conectar a conversar —só aparecem manipulando seu "phone" os que estão sozinhos. E são poucos, 7%.
E eu, o que eu pensei saindo do cinema? Pensei que "Ela" é a história alegre e triste de um amor que dava certo ou não -como a maioria dos amores, que esbarram na nossa burrice neurótica. Nada prova que a amiga do apê ao lado seja uma companheira melhor do que o sistema operacional. As máquinas, em tese, deveriam ser menos neuróticas que a gente, embora, infelizmente, elas aprendam a ser humanas nos imitando.
---------------Fonte: Folha online, 13/02/2014
* Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias
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