terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

" As palavras não amam ninguém "

Edson Athayde*

Não amam, elas, as palavras? Se calhar, se calhar. Temos que concordar, elas, as palavras, são traiçoeiras, seduzem, convencem, iludem, burlam, logram, ludibriam, dissimulam (ah, que maravilha que é um dicionário de sinónimos...) Mas (o que fazer?) eu gosto delas. Sinto que as palavras foram criadas a partir das minhas costelas.

Filhas das letras, as palavras são as mães das frases. Gosto ainda mais destas. Principalmente quando têm curvas, quando derrapamos nos seus seios significantes para nos ampararmos nas suas coxas de significâncias. Por exemplo:

“Tem abraço que parece beijo”. Leio essa frase no ecrã do telemóvel, numa viagem de Metro, e já tenho vontade de abraçar a senhora patusca e gorda que tenho sentada ao meu lado.

“Porque a vida só se dá para quem se deu, para quem amou, para quem sorriu, para quem chorou, para quem sofreu”. Esta é do Vinicius, frase com bom pedigree, frase destilada por décadas no mesmo carvalho que faz um bom whisky (já agora, mais uma do poeta: “O whisky é o melhor amigo do homem; o whisky é o cão engarrafado”).

“Vendo cola para corações partidos”. E eu compro, eu compro.

“Eu não sei de nada, mas desconfio de muita coisa”. Guimarães Rosa sabia muito.

“Um amigo me chamou para cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso e fui.” Escreveu o meu amigo imaginário Caio Fernando Abreu.

Aproveito a citação ao Caio (autor brasileiro muito vivo, apesar de bastante morto) para explicitar o real tema desta crónica: o uso abusivo de nomes geniais para assinar frases banais (uma moda no Facebook, no Twitter e no Pinterest).

Pessoal, tenho a certeza que Eça de Queirós nunca disse: “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Não estou a ver Machado de Assis escrever: “É assim que a porca torce o rabo”. Einstein criou a teoria da relatividade e não a frase: “A cada boca uma sopa”. Como acho pouco provável que Gandhi tenha animado as hostes a exclamar: “A verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima”.

Fernando Pessoa, Jim Morrison, Clarice Lispector, Woody Allen, Paulo Leminski, Beethoven, Neil Armstrong (na maioria das vezes confundido com o ciclista), Freud, Nietzsche, Tolstoi (ou qualquer defunto russo) são apenas algumas das mais recorrentes vítimas dos citadores sem lei.

Cuidado, citar sem saber o que está citando não é uma demonstração de erudição e sim o seu contrário. Ou como diria o meu Tio Olavo: “Para trás mija a burra”. (Não, essa frase aqui não faz sentido; sim, ele nunca disse isso).

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Fonte: http://www.sabado.pt/Homepage.aspx

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