Crise ucraniana é mais uma demonstração de que a rua é um fator político preponderante
O que impressiona nos eventos da Ucrânia é a incrível capacidade de resistência dos manifestantes contrários ao presidente Viktor Yanukovich, que acabou deposto ontem.
Impressionou, por exemplo, o enviado especial do "Monde", Piotr Smolar, que descreve assim os manifestantes: "Um equipamento miserável, mas uma determinação inexplicável. Havia qualquer coisa de patético, de absurdo e de admirável nesse sacrifício, por conquistar algumas dezenas de metros [de ruas ou avenidas]".
Parece razoável, nesse cenário, aceitar a comparação que fez "El País" na sexta-feira, ao lembrar que a "Ucrânia é a terra dos cossacos, guerreiros que serviam a um ou outro invasor, selavam e rompiam alianças, seguindo sempre seus próprios interesses e aspirando à sua própria independência".
O jornal espanhol não hesita em especular que "a tradição cossaca pode considerar-se como um dos componentes da identidade ucraniana atual e seu estudo ajuda a compreender atitudes que se refletem nos processos políticos atuais".
Se a comparação faz sentido, só se pode dizer que os cossacos ganharam. Já era uma vitória o acordo de sexta-feira em que Yanukovich aceitava capar parte de seu mandato e de seus poderes.
Tornou-se uma vitória ainda maior a ocupação do próprio palácio presidencial e a fuga do governante, que acabou deposto pelo Parlamento ucraniano.
Comprova-se que uma das características dos tempos contemporâneos é a emergência da rua como fator político acima e além dos partidos tradicionais. É bom lembrar que estes haviam aceitado o acordo que dava uma sobrevida a Yanukovich, o que a rua (ou os cossacos) rejeitou.
Joshua Kurlantzick, pesquisador do Centro Carnegie, relembra manifestações recentes na Turquia, na própria Ucrânia, na Venezuela, na Malásia e no Camboja, para dizer que elas estiveram "unidas por características comuns: em quase todos esses lugares, manifestantes estavam empurrando para fora do poder presidentes ou primeiro-ministros que eles consideram venais, autoritários ou indiferentes à opinião popular. Quase todos esses governantes, independentemente de quão corruptos, brutais e autocráticos sejam, ganharam eleições em pleitos relativamente livres".
Nesse ponto, Kurlantzick toca em algo que lembra o Brasil dos protestos do ano passado. Escreve que as manifestações "foram consideradas a vingança das elites, por causa da composição dos ativistas. Mas essas demonstrações incluem na verdade não só os mais ricos, mas a classe média nesses países, demonstrando que os protestos têm um base mais ampla do que geralmente assumido".
A Ucrânia parece se enquadrar perfeitamente nessa análise, se se aceitar que os cossacos são os black blocs com causa.
Sua vitória dá razão a Martha Brill Olcott, pesquisadora do Carnegie, para quem "a ideia de espaço pós-soviético, com valores e metas compartilhadas e liderança russa, é agora obsoleta". Perdeu Yanukovich mas perdeu também Vladimir Putin.
crossi@uol.com.br
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