terça-feira, 20 de janeiro de 2015

TAMBÉM QUERO SER CHARLIE

Artigo Zero Hora


CELSO GUTFREIND
                                                   
Psicanalista e escritor
                                                                                                [ Celso Gutfreind ]

Quero ser Charlie e quase sempre consigo. Quando penso no massacre perpetrado na revista, no desrespeito à liberdade do pensamento e à desenvoltura de uma arte, seja ela qual for.

 Então, sou Charlie. Não se pode matar o outro e cada vez mais é preciso ser Charlie para defender esse princípio cabal da civilização contra a barbárie e que deveria ser universal. Por não ter sido até hoje, é preciso crer que a permissão de matar é incompatível com a alcunha de cultura. Parodiando o poeta, arauto de um mundo civilizado, “matou, cultura não era”.

Mas nem sempre consigo ser Charlie. Pode ter a ver com o costume (cultural) de pensar incessantemente para tentar compreender essa vida. Vou à psicanálise e ela me conta que há um terrorista dentro de cada um de nós, basta não ter sido criado com desejo e empatia. Mas ela deixa silêncios que a antropologia preenche, em parte, com as noções de etnocentrismo e relativismo, assegurando a importância de poder se colocar no lugar do outro para conviver em harmonia.
Vivi na França durante seis anos. Lá encontrei a terra da Fraternidade, da Liberdade, da Igualdade. Bastava conversar com meu amigo Gérard ou ir ao Louvre deleitar-me com o respeito à história da arte. Ou caminhar ao léu à Beira do Sena até que um livro caísse na nossa cabeça e a ampliasse. Vivi na França durante seis anos e lá não encontrei a terra da Fraternidade, da Liberdade, da Igualdade. Fui estrangeiro sem passaporte europeu e os guichês só não me trataram pior do que a meu colega Redah, que tinha pele e olhos mais escuros.
 O homem que atendia no serviço de mão de obra estrangeira fez de tudo para não me dar a autorização de trabalho. Faltava-lhe o braço esquerdo e eu lhe alcancei a documentação final no local amputado.
Quando me lembro disso, reencontro envergonhado e arrependido o terrorista que havia em mim e só sossegou depois de trabalhar na parte fraterna da França. Só não matei o funcionário porque eu era e continuo sendo Charlie. Mas acho que um Charlie de verdade precisa fazer o exercício constante de se colocar no lugar do outro e sentir-se nas entranhas do que é estranho para si. Mudar o tom de sua expressão e evitar certas palavras pode não ser renunciar às liberdades individuais. Pode ser Charlie.

Nenhum comentário:

Postar um comentário