domingo, 25 de janeiro de 2015

" Surfando e Impunes "

ArtigoZero Hora 


Flávio Tavares

FLÁVIO TAVARES
Jornalista e escritor
 " ... no Brasil , todo dia se aplica a pena de morte em forma sumária , sem processo,advogado ou juiz  " ...

 

A pena de morte é cruel e, por isto, a execução do brasileiro Marco Archer, lá na distante Indonésia, foi dolorosa. Na angústia da espera (pior do que o fuzilamento em si), ele esteve preso durante 11 anos, mais do que qualquer um dos nossos narcotraficantes notórios. Nem Fernandinho Beira-Mar esteve preso tanto tempo, sem falar dos outros _ os reais chefões, intocáveis em suas mansões, opinando na política ou em grandes corporações. Mas…
Sim, há um imenso “mas…” nisto tudo! No Brasil, todo dia se aplica a pena de morte em forma sumária, escancaradamente, sem processo nem advogado ou juiz. Sem acusação nem denúncia ou defesa. E sem que exista a pena de morte! Por que se estranha, então, quando um tribunal aplica a pena, lá fora, num processo de anos com acusação e defesa?
Entre nós, um juiz não pode condenar à morte. A ninguém se pode pedir a pena, nem sequer pelo crime mais perverso em minucioso processo judicial. A polícia, porém, aplica a pena de morte a seu bel-prazer, sem processo nem juízo, sem ouvir testemunhas nem buscar indícios do crime. Aplica-se a pena de morte por iniciativa própria e única da “autoridade policial”, em decisão guiada unicamente pela insensatez da truculência.
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A execução de Ricardinho Santos (nosso campeão de surfe) defronte à sua casa, com um tiro pelas costas e outro lateral disparados por um policial militar em Santa Catarina, é a mostra atual do horror. Mas a prática é antiga. Em 1981, em Porto Alegre, um soldado da Brigada (que na época cuidava do trânsito) matou com dois tiros um jovem que, às 11h da noite, subindo de carro com a namorada pela Avenida Borges, dobrou à direita na Rua Riachuelo, o que se proíbe até hoje, mesmo “dando mão”. A infração de trânsito foi punida com pena de morte instantânea!
No Rio, São Paulo, Nordeste e em plena Capital da República, matam até menores ou crianças. Não falo das incontáveis vítimas de “balas perdidas” nas favelas ou na rua, mas da “pena direta” aplicada pelos “agentes da lei”.
Tudo é tão absurdamente “normal” que há, até, pesquisas, estatísticas e projeções sobre “qual polícia” mata mais, como um torneio em busca do “campeão” a festejar. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo, mostram que de 2009 a 2013, em quatro anos, a polícia aplicou a pena de morte a 11.197 pessoas no país. Mais do que tudo no Rio de Janeiro, seguido de São Paulo e Bahia. O recorde registrou-se em 2013 no Rio, com 1.331 mortos. Os números de 2014 são ainda incompletos, mas até novembro houve 544 assassinatos pela polícia no Rio e 816 em São Paulo.
Se o policial mata a esmo, por que “nóis não pode matá?” _ perguntará o rapazote maloqueiro, ouvindo o tum-tum-tum grotesco daquilo que chamam de “música” e que o rádio toca e repete, embrutecendo ainda mais seu marginalismo. Está formado, então, o ciclo completo. Uns puxam a mão dos outros, como numa ciranda que roda sem parar. E um crime leva a outro.

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Execução na Indonésia? Chacina em Paris?
Para que mencionar o horror lá de fora, se temos aqui, na repugnância de nossos narizes, a matança absurda que neste 27 de janeiro completará dois anos de impunidade absoluta?
Ou já nos esquecemos da boate Kiss? Já fugiu da retina aquela cena de duas centenas de cadáveres amontoados no piso do ginásio desportivo de Santa Maria, como se nos advertissem de que não vale preparar-se para a vida _ estudar, ser correto e forte _ quando a desídia e a irresponsabilidade mandam em tudo?
A dois anos do morticínio, não há responsáveis. Estamos mais no ar do que na madrugada fatídica de 2013, quando pelo menos havia dor pelos mortos e raiva pelo desleixo dos que abriram caminho ao crime. Hoje, todos têm pose de “campeões”, como se fossem Ricardinho, mas escondem o crime na prancha de surfe, como Marco executado na Indonésia.
E surfam sem parar na onda impune.

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